Paris, Texas, de Wim Wenders, e a crise da arte de contar histórias Divulgação / Argos Films

Paris, Texas, de Wim Wenders, e a crise da arte de contar histórias

O cantor Caetano Veloso detestou o filme “Paris, Texas”. Pareceu-lhe “um dramalhão mexicano encenado como gravura hiperrealista americana com verniz alemão”. Ele vinha de sua experiência de diretor ao filmar “Cinema Falado”, todo ela à moda de Godard, em plenos anos 1980. Apesar do esculacho, a frase do músico baiano aponta três questões que ainda chamam a atenção, 40 anos depois na obra do alemão Wim Wenders: o drama familiar, a estética pós-moderna dos Estados Unidos e o contraponto europeu.

É um exercício de pensar se desenvolvermos os pontos levantados por Caetano. Os três aspectos, mesmo que pareçam errados à primeira vista, dão uma matéria para se discutir. Uma história de família, micro, que vai continuar restrita àquele mundo pequeno — mas aparentemente tão vasto na geografia. Os traços estéticos pós-modernos são múltiplos, um jorro de referências. E, por último, aflora na tela a crise da narração, tão europeia desde os apontamentos do pensador alemão Walter Benjamin, nos anos 1920.

Os primeiros sinais sobre “Paris, Texas” surgiram numa entrevista de Wim Wenders, no final de 1982, na forma de um projeto. O comentário está no livro do diretor “A lógica das Imagens”: “Espero em janeiro/fevereiro, rodar um filme que financiamos internacionalmente, de modo semelhante ao de ‘O Estado das Coisas’. Há, para ele, um treatment de 30 páginas, baseado numa coletânea de contos do autor americano Sam Shepard. Ele escreveu, por exemplo, ‘Zabriskie Point’ com [o diretor Michelangelo] Antonioni, fez muitas peças de teatro depois disso, e é também ator. Gostaria de fazer ver com ele este filme. Consistirá em milhares de histórias numa só. O filme será rodado no Arizona ou no Texas.”

Segundo ele, o filme a ser produzido em 1983 não seria apenas de “milhares de histórias”, mas também contaria com “poemas, notas de diário muito breves. Passa-se tudo em motéis e em viagens”. A base do roteiro foi o livro “Crônicas de Motel”, de Shepard, que é um volume impressionante de anotações que vão rechear o filme. A intenção foi a de trazer para a tela o espaço da fronteira dos Estados Unidos com o México, uma zona de indeterminação que é central para a história do andarilho Travis.

Deserto em cores

As primeiras cenas são um sobrevoo pelas áreas desérticas dos Estados Unidos. Imagens que estão bem guardadas na memória graças aos filmes de faroeste. Mas o que aparece não é um caubói, montado em seu cavalo. Vemos um homem a pé, com a vestimenta surreal de terno preto, gravata, e boné vermelho. A figura é de um maltrapilho, com o olhar para o horizonte vasto. O contraste de cores está no céu azul, hiper-realista, e no amarelo da areia do deserto. Uma águia americana aparece em primeiro plano.

O ambiente desolado se completa com a trilha sonora. Ela é o fio condutor da narrativa. Ry Cooder criou peças sonoras com apenas um violão de cordas de aço, tendo notas esparsas, intervalos imensos entre um som e outro. Sem dúvida, é uma das trilhas mais brilhantes da história do cinema. Ao contrário do tom operístico e épico dos faroestes musicados por Ennio Morricone, o espectador ouve os tons mínimos de Cooder. Cada nota é uma facada no ouvido, reverberando depois que termina o filme.

Aquele ser perdido no deserto texano, saberemos depois, se chama Travis Henderson (interpretado magistralmente por Harry Dean Stanton). O silêncio dele lança a questão que remói a todos: o que ele faz no meio do nada? Um mutismo que, vale ressaltar, remete aos personagens de Samuel Beckett, os da peça “Esperando Godot”. Sam Shepard tinha uma admiração confessada pelo escritor irlandês. Estamos assim diante da questão central da arte de contar histórias nos últimos 100 anos.

A primeira parte de “Paris, Texas” vai girar em torno do reencontro de Travis com seu irmão Walt (feito por Dean Stockwell). Ele mora em Los Angeles, outro espaço mítico dos Estados Unidos e logicamente do cinema, e viaja ao deserto texano para resgatar aquele andarilho, mudo, aparentemente sem história. Os irmãos começam ali o retorno para casa, se é que existe alguma casa. Ao gosto de Wenders, a história se torna um “road movie”, o filme de estrada que gera um aprendizado para os personagens.

A viagem de Travis com Walt é a construção do drama familiar — ou o “dramalhão mexicano”, como disse Caetano. Os laços entre eles vão se reconstituindo no trajeto de volta, incluindo a chave para o título do filme. A localidade chamada Paris, no Texas, é a alegoria para o não-lugar, o lugar nenhum do mundo contemporâneo. Espaço imaginado que, no filme, seria o retorno de Travis a sua origem, ao local onde ele teria sido concebido pelos pais. Extrapolando, seria uma busca pela própria mãe, na figura da terra.

Hiper-realismo

A história do herói que retorna para casa é tão velha quanto o “Ulisses”, de Homero. O que Wenders traz de novo são as imagens fragmentadas da América, repleto de referências culturais. O realismo mais que real pontua cada cena da viagem de Travis e Walt. Os restaurantes onde param na estrada são quase reproduções das telas do pintor Edward Hopper. A admiração de Wenders pelo artista plástico ganhou um filme em 3D em 2020: “Two or three things I know about Edward Hopper”.

Wim Wenders
Wim Wenders: o mestre das narrativas visuais que transcendem fronteiras e emoções

O uso das três cores básicas (azul, vermelho e amarelo) é outro elemento que satura as imagens de “Paris, Texas” e faz a desmontagem cuidadosa dos traços realistas da trama. É como se o espectador fosse convidado o tempo todo para entrar numa obra de arte. Nos afastamos da realidade das coisas para ver melhor o real (essa ideia complexa de se definir). Foi a concepção de “gravura hiperrealista americana” que incomodou Caetano. Mas é esse hiper-realismo que fez a fama do pensador Jean Baudrillard.

E nada mais saturado de imagens do que a metrópole Los Angeles, tanto reais como imaginárias. Wenders preferiu, no entanto, focalizar uma outra cidade. A casa de Walt está numa colina, no alto, e as avenidas expressas estão distantes. Travis precisa de um binóculo para enxergar aquele lugar e, num ponto de virada de história, se encontra com um pregador maluco num viaduto. Los Angeles já foi destruída milhares de vezes pelo cinema, em forma de distopias. Na cena, o pregador prevê um fim do mundo.

Mas o retorno de Travis significa a reconstrução para reatar os fios soltos e emaranhados. As milhares de histórias de Shepard, o silêncio do andarilho, a perplexidade do irmão Walt, tudo isso precisa ganhar sentido. Nesse ponto, Wenders é o mestre da narrativa. Se existe a crise profunda das maneiras de narrar (o que alimenta o pior lado do pós-modernismo), o artista deve ser o contador de histórias que já viu o fim do mundo da bomba atômica (Beckett, do novo) e conhece o desamparo da vida atual.

A amnésia de Travis começa a se desfazer quando Walt mostra a ele uma filmagem caseira, no formato super-8. Nessas imagens rudimentares por natureza (tal qual a memória?), aparece a família de Travis antes de seu sumiço. Ela é formada pela esposa Jane (interpretada por Nastassja Kinski) e pelo filho Hunter (feito pelo garoto Hunter Carson). Com o desmanche da família, Hunter foi morar com Walt e sua esposa Anne (a feita pela atriz francesa Aurore Clément).

Crise da narração

A segunda parte de “Paris, Texas” é reaproximação de Travis com Hunter. Nesse ponto, surge a virada da história com a decisão do pai de levar o filho de volta para sua mãe que vive na cidade de Houston. A viagem deles para encontrar Jane é mais uma jornada de aprendizado dos personagens. Trata-se de uma estrutura narrativa que Wenders usou em seu filme “Alice nas Cidades” (1974) e, sem dúvida, influenciou o roteiro de “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles Jr. 

Contra as distopias, o fim do mundo, a violência pós-moderna, Wim Wenders oferece o caminho do afeto e de um sentido para o ser humano. Num tempo que se fala em demasia de “pós-humano”, o diretor alemão vai combater a crise da narração apontada por Walter Benjamin. O mundo pode estar fragmentado, porém não cabe ao artista imitar apenas a desordem das coisas. A experiência, a vivência, devem ser contadas para os outros. Não é preciso ser épico para se ter um relato que afeta a vida das pessoas.

O ponto alto do filme é o reencontro de Travis com a antiga esposa Jane. Em Houston, com inúmeras avenidas e autoestradas, ela trabalha num local onde mulheres conversam com homens tendo uma separação de um vidro. Não há contato físico entre as pessoas, pois cada um fica numa sala. Só o homem vê a mulher e fala por meio de um telefone, o que torna a voz pouco ou nada reconhecível. É neste espaço artificial que Travis começa a contar sua história para Jane, que vai se reconhecer nela aos poucos.

Como um narrador tradicional de Benjamin, Travis reconta sua trajetória. Aparecem aí os fios e os rastros da história de uma pequena família. A câmera fica praticamente imóvel, porque a condução se dá pela voz do personagem. Apenas a música de Ry Cooder pontua a fala. Nesses aspectos, pode estar o “verniz europeu”, visto e criticado por Caetano Veloso. A obra de Wenders pode ser vista como a permanente reconstituição de memórias em choque com o mundo contemporâneo.

A “crise da narração”, vista por Benjamin e revista hoje pelo filósofo coreano Byung-Chul Han (que mora em Berlim), encontra em Wenders uma possível saída. O filme seguinte do diretor, “Asas do Desejo” (1987), traz os anjos que querem se tornar humanos e decifram o trauma da Segunda Guerra Mundial para os alemães. Uma das obras mais recentes, “Dias Perfeitos” (2023), busca de novo o minimalismo por meio de limpador de banheiros públicos em Tóquio. Surge um Travis japonês na tela.

A repercussão de “Paris, Texas” e da obra de Wenders foi imensa no Brasil. Já citamos o caso de Walter Salles. Em 1990, saiu a pequena joia que é “Minas-Texas”, de Carlos Alberto Prates Correia. Mais recentemente, foi lançada a obra prima “Arábia” (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa, que cria um narrador tradicional e sem anedotas na vida popular brasileira. É possível sim formular outras narrativas para a modernidade que não sejam distopias ou elogios ao cinismo dos personagens.