Woody Allen, em “Meia-Noite em Paris”, constrói uma narrativa que nos obriga a refletir sobre a tirania imposta pelo tempo. Somos, inevitavelmente, prisioneiros de uma força invisível e impiedosa, que nos conduz inexoravelmente ao fim de nossa existência. Desde o nascimento, cada ser humano está imerso numa luta constante contra um adversário invencível, seja o combate travado em breves minutos ou ao longo de décadas. É uma ilusão reconfortante acreditar que, em algum momento, a felicidade plena nos será entregue, mas a verdade é que essa promessa é apenas um mito que nos empurra a perseguir algo inatingível.
Como na alegoria da caverna de Platão, o mundo que percebemos é um reflexo distorcido das nossas percepções mais íntimas, colorido por nossas peculiaridades e ilusões pessoais. Assim, seguimos, presos em nossos próprios devaneios. O tempo, imparcial e implacável, transcende qualquer compreensão humana e continuará a existir enquanto houver vida no universo. O dilema do ser humano, portanto, não reside na passagem inevitável do tempo, mas na busca por algum prazer ou sentido em meio ao caos que constantemente nos envolve.
Allen tem o dom de tornar esse tema pesado mais acessível. Sua genialidade como cineasta é evidenciada por sua habilidade de transformar o ordinário em algo encantador. Suas histórias, em vez de se prenderem à monotonia da realidade cotidiana, oferecem ao espectador um toque de magia, uma fuga bem-vinda da vida comum que todos experimentamos. Mesmo sem a pretensão de viver momentos extraordinários em todos os dias do ano, Allen nos lembra que é possível encontrar algo de encantador nas pequenas coisas. Ao lançar seu 41º filme, o diretor nos desafia a perceber as infinitas oportunidades que a vida nos oferece, sobretudo naqueles momentos em que falhamos em compreender as mensagens que o mundo nos sussurra incessantemente. E, como sempre, ele faz isso com um humor sutil, tornando a reflexão profunda mais leve e acessível.
Gil Pender, o protagonista, representa o arquétipo de um homem à beira do colapso emocional. Mais um alter ego de Allen, Pender simboliza o próprio diretor em sua eterna busca por respostas existenciais, uma busca que é compartilhada, por extensão, com o público. O personagem está prestes a abandonar tudo, embora ainda não tenha plena consciência disso. O roteiro, com sua precisão e originalidade, faz com que essa jornada de autodescoberta se desenrole de forma envolvente, conduzindo o espectador por diálogos afiados e reflexões filosóficas que desafiam o senso comum.
Até Owen Wilson, frequentemente associado a papéis mais leves e de menor profundidade, entrega uma atuação surpreendentemente convincente, ao interpretar um homem em conflito consigo mesmo e com o mundo ao seu redor. A trama entrelaça diferentes linhas narrativas de maneira inesperada e coesa, transportando o espectador do presente para o passado sem esforço, sem nunca questionar a plausibilidade dessa transição. E funciona brilhantemente, pois o filme não deixa dúvidas sobre a coerência dessa construção.
O conflito interno de Pender serve como um ponto de partida para explorações mais profundas. Ele, um roteirista frustrado de sucessos comerciais que almeja se tornar um escritor sério, espelha a autocrítica que Allen frequentemente direciona a si mesmo. Sua relação com Inez, sua noiva fútil e materialista, interpretada por Rachel McAdams, é um catalisador de tensão. Inicialmente, torcemos para que o casal consiga resolver suas diferenças, mas, à medida que a história avança, fica claro que a relação está fadada ao fracasso. A verdadeira virada acontece quando Pender recusa um convite de Paul (Michael Sheen) para uma noite tipicamente burguesa em Paris e, em vez disso, decide mergulhar no universo de figuras históricas icônicas. É nesse ponto que o filme ganha vida, ao prestar homenagem a personalidades como Zelda e F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrude Stein e Alice B. Toklas. O salão de Stein, onde artistas de renome como Pablo Picasso, Salvador Dalí e Luis Buñuel se reuniam, é trazido à tela com uma naturalidade que transporta o espectador para uma era de ouro da arte e da literatura.
O que Allen realmente quer nos dizer, no entanto, é que a insatisfação com o presente é um fardo perigoso. “Meia-Noite em Paris” nos lembra que o tempo que habitamos é o que fazemos dele. Ficar preso a um passado idealizado é uma armadilha, e o filme é um convite a reconsiderar essa tendência. Num mundo tão conturbado quanto o que vivemos, o filme se apresenta como um antídoto contra a nostalgia excessiva e uma reafirmação do valor de viver no presente. É uma obra indispensável, especialmente nestes tempos sombrios, em que a busca por significado é mais urgente do que nunca.
Filme: Meia-Noite em Paris
Direção: Woody Allen
Ano: 2011
Gêneros: Fantasia/Romance/Comédia/Ficção científica
Nota: 10