Definir um filme sobre as descobertas da infância como encantador, sobretudo quando se trata de uma animação, pode soar ou redundante ou apressado, uma vez que o universo da criança se caracteriza pela magia, pelo sonho, mas também pelo confronto com a realidade. Grandes cineastas compuseram trabalhos que se debruçaram sobre as lembranças mais doces — e nem tanto — de personagens ainda por completar o processo de amadurecimento, dos mestres Ingmar Bergman (1918-2007), diretor de “Fanny e Alexander” (1982), a Federico Fellini (1920-1993), com “Amarcord” (1973), passando pelos contemporâneos Luca Guadagnino, de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e Paolo Sorrentino, responsável por “A Mão de Deus” (2021). Paul Graff, o protagonista de “Armageddon Time”, é um garoto de onze anos, ousa sonhar — ainda que seus pais queiram-no um realizador. Com a ajuda dele, James Gray volta a seus verdes anos e leva quem assiste por uma viagem à aurora de sua própria vida, um lugarzinho acolhedor e mágico para onde vamos quando queremos algum alento diante das vicissitudes da existência. Mas a infância também esconde dores, e exatamente aí que o diretor quer chegar.
Falar sobre as coisas que se conhece — e, mais importante, que se ama — é o jeito mais certo de ser universal. Gray está atento à máxima, elaborada a partir de “O rio da minha aldeia”, poema do lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), publicado em 1946, onze anos depois sua morte, e busca em suas memórias o ridículo, o patético, o dramático de se existir, tão plenos de beleza quanto a história de solenidade mais majestosamente altiva, com a ressalva de que histórias assim podem nunca nos fazer ter o gosto do devaneio que aparta as nossas vidas da espiral de angústia e desespero que todas as criaturas enfrentam. Em 1980, Paul, o alter ego de Gray, começa o ano letivo na Escola Pública 173, no Queens, bairro operário ao norte de Nova York, tentando lidar com as várias mudanças que vem se materializando em sua rotina. Os movimentos iniciais do garoto são mais vagarosos que de costume, até que ele, paulatinamente, toma pé da realidade, ao ser enquadrado pelo professor Turtletaub, de Andrew Polk. O diretor-roteirista parece presa de uma certa fixação com suas próprias lembranças infelizes, até descortinar um universo bem mais amplo, em camadas finas que solta com todo o cuidado. Resta patente que Turtletaub tem um grande problema com Johnny Davis, o garoto negro vivido por Jaylin Webb, e a partir desse ponto, Gray conduz seu filme pelo labirinto intrincado em que fala sobre inadequação e racismo, assuntos que puxam o que de mais sério há na história, suavizada pela interação de Paul com o avô, Aaron, o único a entender seus anseios. Ainda que breves, as cenas de Michael Banks Repeta e Anthony Hopkins são como um bálsamo para todos quantos já sofreram como o garoto, sem jamais resvalar na facilidade ou na pieguice.
Nem era preciso, mas ainda há espaço para que se especule sobre o que faz gente como Donald Trump subir tão alto, numa metáfora sobre determinação e cinismo difícil de ser processada. E por isso mesmo genial.
Filme: Armageddon Time
Direção: James Gray
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10