Se hoje um pesquisador acadêmico analisa “Friends” ou “Seinfeld” a sério, como questão relevante, isso se deve à ousadia de Fredric Jameson (1934-2024), morto recentemente. Foi ele quem percebeu o capitalismo dos anos 1970 absorvendo aspectos da cultura. Não se tratava mais de uma indústria cultural isolada num cantinho, mas de um movimento da economia que transformava um show, uma viagem ou um produto numa experiência humana. A lógica de um smartphone vem das formas atuais de consumo e da cultura.
Numa época que valoriza a flexibilidade das ideias, Jameson marcou sua trajetória pela consistência das ideias. Sim, ele foi um dos maiores pensadores do marxismo (o grande monstro de hoje) e jamais abandonou sua linha de pensamento. Teve capacidade de juntar coisas impensáveis, pois lá estava ele com os mesmos métodos que se caracterizaram por uma abertura sem igual a quem pensa diferente. Não é pouca coisa ser marxistas nos Estados Unidos, formado nos anos 1950, quando houve a perseguição aos comunistas.
Jameson completou seus estudos na Universidade de Yale, onde estava na mesma época o então aluno Harold Bloom — o crítico literário que se tornou a maior celebridade do mercado de livros em sua área de atuação, nos últimos 30 anos. Nada mais estranho do que, no mesmo ambiente, tenham surgido dois pensadores tão diferentes. Um marxista, e outro um especialista em romantismo inglês. O tempo dirá qual deles teve mais razão e sabedoria para decifrar a virada do século 20 para o 21.
Seus primeiros livros de Jameson foram “Sartre: As Origens de um Estilo” (1961) e “Marxismo e Forma” (1971). Trata-se de estudos muito bem informados que mapeiam o pensamento marxista no que ele se liga à literatura, às artes e à cultura. Em invés de estudar a economia e sociedade no sentido estrito (classes sociais, por exemplo), ele mantinha os olhos em objetos culturais. Nesse ponto, sobressai a influência de Walter Benjamin, Theodor Adorno, Ernst Bloch, Georg Lukács e Herbert Marcuse.
Com essas fontes, seria apenas uma leitura marxista a mais na praça. O que Jameson fez de tão inovador, porém, foi incluir em seus estudos o impossível: levar em consideração, e a sério, o chamado pós-estruturalismo francês. Estamos falando de Deleuze, Derrida e seus discípulos norte-americanos (J. Hillis Miller). Foi essa invasão francesa que virou alvo da metralhadora de Harold Bloom, pois esses autores estariam violando a musa de nome “Literatura”, um ser angelical e guardião da tradição.
Chegada do pós-moderno
O primeiro livro audacioso de Jameson foi nessa linha de juntar coisas aparentemente inconciliáveis. O volume “O Inconsciente Político: A Narrativa como Ato Socialmente Simbólico” (1981) é um marco dos estudos literários e culturais de todos os tempos. Quando o marxismo vai dando adeus às humanidades, ao longo dos anos 1970, aparece um autor sofisticado para analisar Balzac e Joseph Conrad sob nova perspectiva. Falava de utopia e ideologia, para o desespero dos puristas e cultuadores da musa literária.
O passo de mestre foi dado por Jameson no ano de 1982. O mundo havia alterado suas formas de produção: as finanças se tornaram o centro da economia, o desemprego mostrou que o mundo dava importância zero ao trabalho humano e a tecnologia assumiu relevância ainda maior por meio da revolução microeletrônica. Na política, a dupla Ronald Reagan e Margareth Thatcher inaugurou o neoliberalismo e o festival de barbárie social. O futuro não era mais como era antigamente.
Jameson recorreu a Ernst Mandel para classificar aquele período de “capitalismo tardio”, ou seja, a fase de “tônica estagnante”. Do mato capitalista, não sairia coelho algum. O livro “Pós-modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio” (1982) mapeou sintomas da época. O autor dividiu os capítulos em tópicos: ideologia, vídeo, cultura, arquitetura, espaço, tempo, teoria, economia, cinema. A intenção era partir de fragmentos para chegar a uma totalidade, ter uma compreensão do todo da vida contemporânea.
A investigação de Jameson recebeu o nome de “mapeamento cognitivo”. A referência à ideia de “mapa” se explica pela importância da questão do espaço, da geografia, na atualidade. Antes, com o modernismo, segundo ele, o centro estava na noção de tempo. Dessa maneira, quem olha para o mundo, a cultura, as artes, deve identificar os pequenos sintomas que explicam o todo da vida. Pensando hoje na internet e nas redes sociais, o “mapeamento cognitivo” é um método atualíssimo de análise.
Alegoria nacional
A primazia do espaço, aliado ao tempo, é um aspecto fundamental trazido pela obra de Fredric Jameson. Alguns ensaios dele são emblemáticos nesse sentido, como “Literatura do terceiro mundo na era do capitalismo multinacional” (1986) e “Sobre a substituição de importações literárias e culturais no terceiro mundo: o caso da obra testemunhal” (1991). Neles, está embutido o conceito de “alegoria nacional” que causou e ainda causa uma polêmica infernal, mas que rende discussões riquíssimas.
Com suas ideias inovadoras circulando pelo mundo, Jameson passou os últimos 30 anos aperfeiçoando o olhar e a escrita. Foi um período em que ele reuniu seus escritos esparsos, carregados de imensa originalidade. Em 1990, foi lançada a coletânea “As Marcas de Visível”, que traz análises brilhantes de filmes como “Tubarão”, “O Poderoso Chefão”, “O Iluminado”, “Um Dia de Cão” e a obra de Alfred Hitchcock. A produção mais popular ganhou uma interpretação da mais alta sofisticação.
Pegar um objeto cultural e observar suas implicações mais amplas para o mundo: essa era a chave de leitura de Jameson. No ensaio “Cultura e capital financeiro” (1997), por exemplo, ele construiu uma longa argumentação histórica para apontar que os trailers de filmes seriam a forma narrativa da atualidade. Isso foi dito muito antes de que surgissem o YouTube, o TikTok e o Kwai, com seus vídeos de curtíssima duração e fragmentados ao extremo. Só um grande crítico está atento a tais detalhes.
Jameson tinha um olhar muito fixo para o tempo do presente, o contemporâneo. Mesmo ao escrever a obra-prima “O Método Brecht” (1998), ele ia contra a intuição do momento para mostrar a importância do dramaturgo alemão. Neste livro, consta uma de suas frases mais conhecidas: vivemos em “um presente imediato em que a retórica do mercado pós-guerra fria [a partir dos anos 1990] chega a ser mais anticomunista que a dos velhos tempos”. Algo que a ascensão da extrema-direita só veio confirmar.
Neste ano, foi lançada a coletânea “Invenções do Presente — O Romance e Suas Crises da Globalização”. Jameson reuniu artigos, ensaios e entrevistas de autores contemporâneos. Do fenômeno global Karl Ove Knausgard, ele diz: “A fascinação que Knausgaard, talvez sem querer, acaba exercendo sobre seus leitores. Ficamos nos perguntando por que sentimos tanta satisfação na anotação de todas essas coisas do dia a dia: as pessoas que passam na rua abaixo da varanda, as coisas que precisamos comprar na loja, as trocas casuais na escola das crianças ou o que vemos nas viagens ocasionais, em palestras ou em conferências”. Trata-se de uma leitura provocadora de um autor da atualidade.
O colapso da modernidade, o crítico vai analisá-lo numa série impressionante de artigos e ensaios, reunidos em “Arqueologias do Futuro — O Desejo Chamado Utopia e Outras Ficções Científicas” (2005). Jameson teve um olhar muito dedicado a essa produção “menor” da ficção científica que vive no par utopia/distopia. A crise climática e a pandemia de Covid-19 jogaram o mundo definitivamente no registro distópico. Assim virou um lugar comum perceber a caminhada rumo ao fim do planeta Terra.
Aos leitores e às leitoras de hoje e do futuro, ficará o legado de um pensador que, em 2003, fez um dos diagnósticos mais certeiros e conhecidos do século 21: “Alguém disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. Agora podemos revisar isso e testemunhar a tentativa de imaginar o capitalismo por meio da imaginação do fim do mundo”. O capitalismo atual carrega um sentido apocalíptico que a extrema-direita e seus seguidores desejam o tempo todo.