James Joyce e Dublinenses: uma bula para o contista moderno

James Joyce e Dublinenses: uma bula para o contista moderno

Se o livro “Dublinenses”, de James Joyce, contivesse apenas o conto “Os mortos”, já seria suficiente para torná-lo uma obra fundamental na literatura universal. Afinal, “Os mortos” não é apenas o melhor conto da coletânea, mas talvez o maior conto da história literária, um exemplo de perfeição técnica e complexidade emocional que transformou para sempre o modo de contar histórias. Contudo, “Dublinenses” vai muito além desse conto magistral. Trata-se de uma obra que, em sua totalidade, estabelece um paradigma de tal magnitude que se pode defender que todo contista, depois de Joyce, deveria ter esse livro como uma bula — seja para fazer o gênero caminhar rumo ao futuro, seja para servir o conto em seu estado de perfeição. Em cada uma de suas narrativas, Joyce atinge um nível de precisão técnica que ainda hoje permanece inigualável, consolidando o gênero e oferecendo, ao mesmo tempo, um caminho inevitável para sua evolução.

“Dublinenses” é composto por quinze contos, cada um explorando a vida cotidiana de Dublin no início do século 20, mas não se limita a uma visão realista ou documental. A verdadeira genialidade de Joyce reside na capacidade de revelar a complexidade psicológica de seus personagens e de suas situações, operando com uma profundidade filosófica e estética que transcende o contexto local. O que Joyce faz com o conto é semelhante ao que ele fez com o romance em “Ulisses”: ele destrincha as estruturas convencionais e oferece novas possibilidades formais e narrativas que redefinem o próprio gênero.

Dublinenses
Dublinenses, de James Joyce (Penguin-Companhia, 280 páginas, tradução de Caetano W. Galindo)

A coletânea oferece uma visão panorâmica de Dublin — e, por extensão, da humanidade —, partindo da infância, passando pela juventude e maturidade, até chegar à morte, que encontra seu clímax em “Os mortos”. Cada conto pode ser lido como um momento de epifania ou estagnação, capturando a “paralisia” dublinense que tanto preocupava Joyce. Richard Ellmann, o mais destacado crítico e biógrafo de Joyce, observa que o autor queria “prender a alma da cidade em um paralisador espelho”, mas o que ele conseguiu foi mais do que isso; a obra é um estudo profundo sobre a condição humana, sobre os limites da liberdade individual em face das pressões sociais e familiares, e sobre a dificuldade de transcender a banalidade da existência cotidiana.

Se começarmos pelo conto “Arábia”, que, embora breve, encapsula o sentido da frustração e da desilusão juvenil, percebemos como Joyce cria um espaço psicológico intricado. O narrador, apaixonado pela irmã de seu amigo, projeta em sua viagem ao bazar uma visão romântica e espiritualizada da vida. Contudo, quando finalmente chega a Arábia, tudo o que encontra é um mercado escuro e decadente, onde o objeto de seu desejo perde sua aura de mistério e beleza. A frustração final do narrador, ao perceber a banalidade de seu sonho, é representativa de um dos grandes temas da obra: a incapacidade de realizar o ideal diante da dura realidade.

Em “Uma pequena nuvem”, Joyce oferece um retrato brilhante da mediocridade da vida adulta por meio do personagem de Little Chandler, um homem que sonha com a glória literária, mas cuja vida se revela opressivamente limitada. Little Chandler encontra seu antigo amigo Gallaher, que alcançou o sucesso em Londres, mas, em vez de inspirar seu antigo companheiro, Gallaher apenas intensifica o sentimento de fracasso de Chandler. O desfecho do conto, com Chandler explodindo em lágrimas de frustração e culpa, é um dos mais comoventes da coletânea. Aqui, Joyce revela uma das grandes virtudes do conto como gênero: a capacidade de capturar uma vida inteira em um único momento de crise emocional.

Entretanto, é em “Os mortos” que Joyce alcança a apoteose de sua arte. Gabriel Conroy, o protagonista, é um homem educado, refinado, que se orgulha de sua sensibilidade e de sua capacidade intelectual. Contudo, ao longo da narrativa, percebemos como suas certezas são constantemente minadas por encontros e conversas que revelam sua alienação da vida real e das emoções que o cercam. O momento de clímax, quando sua esposa Gretta revela ter amado outro homem antes dele, transforma Gabriel. Ele percebe, em uma epifania devastadora, a insignificância de sua própria vida emocional em comparação com a paixão arrebatadora que esse outro homem despertara em sua esposa. O conto termina com uma das passagens mais belas e comoventes da literatura, quando Gabriel contempla a neve caindo sobre toda a Irlanda, “sobre todos os vivos e todos os mortos”, em uma meditação sobre a mortalidade, o amor e a efemeridade da vida.

A grandeza de “Os mortos” reside não apenas na maestria técnica de Joyce, mas na profundidade filosófica e emocional que ele alcança. Como observa Ellmann, este conto é o apogeu do conceito joyciano de epifania, em que a revelação interior do personagem reverbera para além da narrativa, englobando a própria condição humana. Para qualquer escritor que deseje entender as possibilidades do conto como forma literária, “Os mortos” deve ser considerado um texto central, pois demonstra como o conto pode se elevar a um nível de complexidade e ressonância que rivaliza com os maiores romances.

Do ponto de vista da teoria do conto, Julio Cortázar oferece uma visão valiosa para entender por que “Dublinenses” é um livro essencial. Em sua visão, o conto é uma forma condensada e intensa que exige do autor um domínio absoluto da narrativa. Para Cortázar, o conto é como um “knockout”, atingindo o leitor com uma força emocional e intelectual em um curto espaço de tempo. Joyce exemplifica esse princípio com perfeição. Cada conto de seu livro é uma pequena obra-prima, construída com tal precisão que mesmo os momentos mais cotidianos assumem um significado profundo.

Além disso, o que distingue “Dublinenses” de outras coletâneas de contos é a coesão temática e estilística que Joyce consegue imprimir ao conjunto. Embora cada narrativa seja independente, todas elas compartilham uma visão comum da vida em Dublin, uma cidade marcada pela estagnação, pela frustração e pela incapacidade de mudança. Essa coesão torna o livro mais do que uma simples reunião de histórias; ele é, em sua totalidade, um retrato de uma sociedade em crise e de indivíduos presos em seus próprios dilemas existenciais.

Outro conto digno de nota é “Clay”, em que a protagonista Maria, uma mulher humilde e solitária, tenta encontrar algum sentido ou alegria em sua vida através de pequenos gestos e rituais. Joyce nos conduz através de uma tarde aparentemente banal, mas, ao final, revela, com uma sutileza devastadora, a profundidade da solidão e da impotência de Maria. A simplicidade da narrativa oculta uma riqueza de detalhes e camadas emocionais, demonstrando como Joyce manipula a forma curta para criar uma experiência literária intensa e profunda.

Se Joyce oferece, com seus contos, uma perfeição técnica que serve como modelo para o gênero na modernidade, ele também abre caminho para inovações futuras. Sua exploração da consciência interior dos personagens, sua habilidade em transformar momentos banais em revelações profundas e seu domínio da linguagem fazem de “Dublinenses” não apenas uma obra fundamental, mas também um ponto de partida para novas possibilidades narrativas. Escritores como Virginia Woolf, Katherine Mansfield e John Cheever, entre outros, devem muito à influência de Joyce, e seria impossível imaginar a evolução do conto moderno sem o impacto de “Dublinenses”.

Afirmar que este conjunto de contos é uma bula para contistas não é apenas uma defesa hiperbólica. Joyce estabeleceu um padrão técnico e emocional que, até hoje, serve de referência para escritores e críticos. Sua capacidade de capturar a essência da vida em momentos fugazes, de esculpir personagens complexos em poucas páginas e de elevar o conto a uma forma de arte sublime permanece inigualável. “Dublinenses” é, sem dúvida, um guia indispensável para qualquer contista que aspire a alcançar o mais alto nível de excelência literária.