Candidato ao Oscar em 2016, obra-prima do cinema brasileiro com 97% de aprovação no Rotten Tomatoes está na Netflix Divulgação / Paris Filme

Candidato ao Oscar em 2016, obra-prima do cinema brasileiro com 97% de aprovação no Rotten Tomatoes está na Netflix

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, “Que Horas Ela Volta?” é uma obra do cinema nacional que faz muito mais do que retratar o cotidiano doméstico; o filme traz uma análise crítica das relações entre patrões e empregados, destacando a complexidade do papel desempenhado por essas trabalhadoras. Muylaert aborda de forma incisiva os vínculos emocionais e educativos que se formam entre empregadas e os filhos de seus patrões, sugerindo uma reflexão profunda sobre a invisibilidade de tais funções no contexto familiar. Com uma narrativa envolvente, o filme descontrói a ideia de que o trabalho doméstico é apenas utilitário, revelando a relevância emocional e formativa dessas mulheres no crescimento e desenvolvimento das crianças.

O enredo central é inspirado em uma experiência pessoal da diretora com sua funcionária, que deixou sua filha no Nordeste para buscar uma vida melhor em São Paulo. Val, a protagonista, reflete essa realidade. Trabalhando para uma família de classe média alta, Val desenvolve uma relação de afeto com Fabinho, o filho de seus patrões, ao ponto de tratá-lo como se fosse seu próprio filho. Fabinho, por sua vez, encontra em Val uma figura materna, nutrindo por ela uma ligação emocional mais forte do que com sua própria mãe, que esteve ausente durante grande parte de sua infância por conta de compromissos profissionais.

A trama ganha novos contornos quando Jéssica, a filha de Val, chega a São Paulo com o intuito de prestar vestibular. A presença da jovem desestabiliza a dinâmica doméstica, questionando as barreiras invisíveis que circunscrevem o papel da empregada dentro da casa. Jéssica desafia as normas tácitas que regem o comportamento das empregadas domésticas, provocando desconforto ao se recusar a aceitar as restrições que sua mãe silenciosamente acatou durante tantos anos. Sua postura questionadora expõe a hipocrisia do discurso que rotula essas trabalhadoras como “parte da família”, mas que, na prática, as exclui de direitos básicos, como sentar-se à mesa ou usufruir da mesma liberdade no espaço que ocupam.

Embora Val tenha sido responsável pela educação e cuidado de Fabinho desde a infância, ela nunca teve o mesmo nível de autonomia ou acesso que os membros da família. A crítica levantada pelo filme vai além da simples exposição das desigualdades. Muylaert aponta para uma questão social mais ampla: o papel das empregadas domésticas na criação das futuras gerações, enquanto elas mesmas muitas vezes abrem mão de estar presentes na vida de seus próprios filhos. A chegada de Jéssica intensifica essa reflexão, ao passo que ela rompe com os limites impostos, rejeitando a ideia de que sua posição socioeconômica deve determinar suas ambições ou restringir sua capacidade de pensar criticamente.

A interação entre Jéssica e Fabinho sublinha esse contraste. Ele, embora inserido numa posição de privilégio, não exibe a mesma determinação ou perspicácia que Jéssica, uma jovem que teve menos oportunidades. Esse desequilíbrio é evidenciado em uma cena específica, onde Fabinho, com ar de superioridade, comenta sobre a autoconfiança de Jéssica, sentindo-se intimidado por sua postura assertiva e sua recusa em aceitar um papel subalterno. Muylaert constrói essas tensões com diálogos simples, porém carregados de significado, tornando o filme uma peça afiada de crítica social.

O desenvolvimento do roteiro de Muylaert foi um processo extenso, passando por diversas versões até que a cineasta considerasse estar pronto para filmagem, o que só ocorreu em 2014. Entretanto, o conceito da história já havia sido criado muitos anos antes, em 2002. Esse cuidado e maturação do texto contribuíram para que o filme alcançasse uma profundidade emocional e narrativa, que foi reconhecida em diversos festivais ao redor do mundo.

Em 2015, o longa foi incluído na lista dos cinco melhores filmes estrangeiros pela National Board Review, uma instituição crítica de cinema de grande prestígio nos Estados Unidos. A produção chegou a ser escolhida pelo Brasil como representante ao Oscar, mas não conseguiu avançar entre os indicados finais. Mesmo assim, “Que Horas Ela Volta?” recebeu grande aclamação da crítica, especialmente por sua abordagem delicada e ao mesmo tempo contundente das dinâmicas sociais e dos papéis de gênero, sendo elogiado como uma produção que leva o espectador a uma reflexão importante sobre a posição das mulheres na sociedade.

Ao tratar de forma sensível temas como classe, poder e afeto, Muylaert entrega uma obra cuja sutileza nos diálogos contrasta com a força de suas implicações. Trata-se de uma narrativa que, ao explorar as fronteiras emocionais e sociais que cercam as relações de trabalho doméstico, desafia o espectador a repensar o lugar dessas mulheres que, apesar de indispensáveis, continuam sendo marginalizadas no próprio espaço que ajudam a sustentar.


Filme: Que Horas Ela Volta?
Direção: Anna Muylaert
Ano: 2014
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 10/10

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.