A estética inconfundível de Tim Burton se une ao universo sobrenatural criado por Ransom Riggs em “O Lar das Crianças Peculiares”, uma fantasia aventuresca que traz, de forma lúdica, uma mensagem política profunda. A narrativa aborda temas como a aceitação das diferenças, a intolerância e o valor da diversidade, tornando-os mais acessíveis ao público infantojuvenil, mas sem perder sua seriedade.
O enredo gira em torno de Jacob Portman (Asa Butterfield), um jovem que presencia a morte misteriosa de seu avô por uma criatura que mistura o humano e o sobrenatural. Esse evento traumático leva Jacob a embarcar em uma jornada em busca de respostas, que o conduz até Miss Peregrine (Eva Green), uma guardiã que administra um lar para crianças com habilidades peculiares. Diferente do que pode parecer, essas peculiaridades não são tratadas como “superpoderes”, mas sim como características que definem quem essas crianças são, algo intrínseco às suas personalidades e identidades. Esses jovens, conhecidos como “peculiares”, são únicos em sua própria essência.
Jacob inicialmente acredita ser comum, incapaz de enxergar qualquer peculiaridade em si, diferentemente dos outros moradores do lar. No entanto, ao encontrar Miss Peregrine, que também é uma peculiar — uma “ymbryne”, ser com a capacidade de se transformar em ave e manipular o tempo —, ele descobre que o orfanato onde vivem está situado em uma lacuna temporal. Esse lar, seus habitantes e Miss Peregrine existem dentro de um loop temporal, repetindo o mesmo dia indefinidamente. Esse ciclo ocorre em 1943, pouco antes de um ataque nazista destruir o local.
A habilidade de Miss Peregrine de manipular o tempo permite que as crianças estejam sempre protegidas, congeladas em um estado eterno, onde a ameaça da morte é constantemente adiada. Elas vivem o mesmo dia em segurança, isoladas do mundo exterior e das forças destrutivas que as cercam. Essa proteção, porém, vem ao custo de suas vidas normais, pois ficam presas em um tempo que não avança.
Durante o Holocausto, uma das políticas mais cruéis do regime nazista era a eliminação sistemática de indivíduos que não se encaixavam em seus padrões de “perfeição”. Pessoas com deficiências físicas, mentais ou transtornos emocionais eram tratadas como aberrações, exterminadas para que seus genes considerados “indesejáveis” não se propagassem. A analogia com os peculiares é clara. Embora essas crianças não existam no mundo real, dentro da ficção de Riggs elas seriam alvos diretos do regime nazista, vítimas de uma intolerância que busca erradicar tudo o que é visto como diferente ou ameaçador.
No filme, os peculiares tornam-se heróis em uma batalha contra Barron (Samuel L. Jackson) e seus seguidores, os “etéreos”, que caçam esses jovens extraordinários. Essas criaturas representam simbolicamente a intolerância e o ódio pelos diferentes. Barron e seus aliados, assim como os nazistas da vida real, são movidos pelo medo e pela incapacidade de aceitar o que não entendem. Sua reação à diferença é destrutiva, uma tentativa de eliminar tudo o que foge ao seu controle ou compreensão.
Ao enfrentar Barron e seus seguidores, os peculiares não apenas lutam por suas vidas, mas também pela aceitação de quem realmente são. A narrativa deixa claro que as diferenças não devem ser motivo de vergonha ou medo, mas sim algo a ser celebrado e valorizado. Cada peculiaridade, por mais incomum que seja, contribui para a força coletiva do grupo. Essa é uma das mensagens centrais do filme: a verdadeira força reside na diversidade e na aceitação das próprias singularidades.
Além disso, a jornada de Jacob é um reflexo da busca pelo autoconhecimento. Ele parte como um jovem inseguro, acreditando não ter nada de especial, mas aos poucos descobre que sua peculiaridade, apesar de não ser evidente no início, é crucial para o destino das crianças. Essa descoberta reforça a ideia de que muitas vezes, o que nos torna únicos está escondido, esperando ser revelado no momento certo.
A obra se revela uma celebração das diferenças e da luta contra a intolerância. Ela nos lembra que o medo do desconhecido não deve se traduzir em destruição, mas em uma oportunidade de entender e valorizar o que há de singular em cada indivíduo. Tim Burton consegue equilibrar o tom sombrio da narrativa com uma estética encantadora e cheia de simbolismos, criando uma obra que não apenas entretém, mas que também provoca reflexão.
“O Lar das Crianças Peculiares” vai além do entretenimento e da fantasia. Ele oferece ao público uma lição valiosa sobre a importância da aceitação e da diversidade, destacando que, em um mundo cheio de preconceitos e intolerância, é essencial reconhecer o valor das diferenças e lutar contra as forças que tentam eliminá-las. Assim, a fantasia de Riggs, transformada em cinema pelas mãos de Burton, se torna uma metáfora poderosa para o respeito à individualidade e para o combate ao preconceito.
Filme: O Lar das Crianças Peculiares
Direção: Tim Burton
Ano: 2016
Gênero: Fantasia/Aventura
Nota: 8