O tempo, em sua impassível marcha, revela-se o mais implacável dos algozes da humanidade. Ele nos impõe o fardo da finitude, enquanto permite que nos apeguemos a breves ilusões de felicidade. Desde que o homem desenvolveu a consciência, ele se vê preso a uma luta constante contra um oponente invencível, numa disputa que atravessa os séculos. O tempo, em sua astúcia, nos deixa experimentar uma sensação temporária de prazer, uma promessa ilusória de contentamento, apenas para logo nos relembrar da natureza efêmera de tudo.
Em um mundo que, tal qual a alegoria da caverna de Platão, projeta sombras de realidades distorcidas, cada indivíduo se vê enredado em suas próprias percepções, presas às suas idiossincrasias. Assim, o tempo segue, uma presença inalterável e incompreensível, permeando todas as esferas do universo, ditando o curso de nossas vidas de maneira implacável. Diante disso, a verdadeira questão que atormenta o ser humano não é a passagem inexorável das horas, mas a busca por um sentido que possa trazer alegria e significado em meio ao desespero que essa passagem gera. Encontrar o prazer no coração da angústia é o maior dilema humano.
Woody Allen, com sua destreza singular, lança mão de uma habilidade única para disfarçar a banalidade do tempo e conduzir suas histórias para territórios onde a mágica está sempre à espreita. Em seus filmes, há sempre uma sensação de encantamento, uma fuga das realidades monótonas que marcam a rotina de homens comuns. Allen compreende como poucos que viver, em sua essência, é um constante embate com desafios, e que o segredo está em enxergar cada um desses desafios como uma oportunidade de transformação e aprendizado.
Com seu 41° filme, ele demonstra que, se a vida muitas vezes nos impõe dificuldades, é possível enfrentá-las com uma perspectiva renovada, onde cada situação se torna uma chance de absorver as lições que o mundo, incansavelmente, nos oferece. Essas lições estão profundamente conectadas à nossa constante dificuldade em interpretar o que está ao nosso redor, o que nos é dito em alto e bom som pelo universo, mas que, por nossa natureza rebelde e presunçosa, muitas vezes ignoramos. Esse é o convite de Allen: uma chamada à razão, à percepção, e, acima de tudo, à compreensão de que o tempo, se bem entendido, pode ser mais do que um simples adversário.
Gil Pender, o protagonista da história, é um homem à beira de um colapso emocional. Ele se encontra no limiar de uma decisão drástica, ainda que não tenha total consciência disso, e, como tantos outros personagens de Allen, representa uma faceta do próprio cineasta. Pender está prestes a abdicar de tudo o que construiu, embora não saiba exatamente como isso acontecerá ou qual será o catalisador dessa mudança. Em um roteiro repleto de diálogos afiados e reflexões filosóficas singulares, Allen esmiúça o dilema existencial de seu protagonista com precisão cirúrgica.
Aos poucos, o diretor vai moldando a narrativa até chegar a uma conclusão que, embora esperada, surpreende por sua consistência e profundidade. Owen Wilson, intérprete de Pender, assume com competência o papel, oferecendo uma atuação surpreendentemente sólida, mesmo para alguém que já demonstrou variações de desempenho em papéis menos exigentes. O filme, com suas idas e vindas no tempo, sua transição suave entre passado, presente e futuro, mantém o espectador imerso em uma trama onde cada elemento parece fazer sentido de forma quase natural.
A trama desenvolve-se a partir do conflito central de Pender, um roteirista hollywoodiano insatisfeito com a superficialidade dos filmes que escreve e que almeja ser reconhecido como um romancista sério. Esse desejo, que carrega uma forte autocrítica por parte de Allen, coloca o protagonista em rota de colisão com Inez, sua noiva, interpretada por Rachel McAdams. À medida que a narrativa avança, fica cada vez mais claro para o público que o relacionamento entre os dois é insustentável, embora no início se torça para que as coisas se acertem.
Quando Pender decide recusar um convite de Paul, personagem de Michael Sheen, para desfrutar da noite parisiense em termos burgueses e imediatistas, o personagem faz a transição para um novo mundo. Nesse momento, ele atravessa uma ponte metafórica e literal, aproximando-se de figuras que marcaram a história das artes e da literatura, homenageadas por Allen: Zelda e F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrude Stein e outros frequentadores do famoso salão de Stein. Kathy Bates, no papel de Stein, brilha de forma contida, mas indispensável à narrativa, assim como os retratos sutis de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Cole Porter, Man Ray e Luis Buñuel.
Por fim, Allen nos conduz à reflexão que permeia todo o filme: o perigo de nos prendermos a um tempo que não nos pertence. A insatisfação com o presente é um risco que pode levar à estagnação, à incapacidade de viver plenamente. “Meia-Noite em Paris” é, portanto, um lembrete sobre a importância de aceitar o tempo em que vivemos e de aprender a extrair dele o máximo. Numa era tão sombria como a que atravessamos, essa lição é mais necessária do que nunca.
Filme: Meia-Noite em Paris
Direção: Woody Allen
Ano: 2011
Gêneros: Ficção científica/Fantasia/Romance/Comédia
Nota: 10