Para românticos incuráveis: filme sobre amor proibido, da Netflix, que vai estremecer seu coração Divulgação / Kinostar Filmverleih

Para românticos incuráveis: filme sobre amor proibido, da Netflix, que vai estremecer seu coração

Regras de comportamento, padrões de conduta e noções de finesse parecem ter sido elaborados com o propósito de acentuar ainda mais a separação entre os privilegiados que detêm o poder e os marginalizados que estão sujeitos a obedecer. Essa dinâmica pode ser interpretada como uma estratégia para fazer com que os menos favorecidos aspirem ao status dos primeiros, mesmo que sejam plenamente conscientes de que o sistema os impede de alcançar tal ambição. Independentemente de sua vontade, o amor tem a capacidade de igualar a todos os seres humanos, pois os verdadeiros amantes não se preocupam com a origem ou a posição daquele que conquista seu coração. Quando a paixão se acende, o único desejo é amar.

O caminho para a autodestruição é amplo, mas envolto em trevas; assim que o ser humano decide seguir por essa trilha obscura da existência, surgem inúmeras alternativas que, embora possam parecer diretas, o levam inevitavelmente à desgraça e, eventualmente, à morte. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais profundos e intrincados da história, propôs a ideia de que o recomeço é uma questão fundamental da vida.

A reflexão heideggeriana destaca as diversas descobertas que fazemos ao longo da jornada, uma verdadeira cornucópia de mistérios cuja resolução é, na melhor das hipóteses, ilusória. Nesse contexto, a inquietação humana diante da passagem do tempo, que é implacável e muitas vezes cruel, gera uma urgência de não desperdiçar nenhuma oportunidade, levando o indivíduo a se apegar, como um mendigo a um prato de sopa em uma noite fria, a qualquer indício que sugira uma mudança de vida. Essa transformação é sempre necessária e, em muitos casos, o único sinal de que ainda há esperança e que a vida não se esqueceu de nós.

Quando o ser humano reconhece possíveis espaços para arrependimento e reformulação de suas ações, deve, sem hesitação, lutar contra a correnteza e buscar sua salvação. Para Heidegger, a existência humana é um processo contínuo de transformação, onde nada é imediato ou definitivo, e a natureza do homem requer uma vigilância redobrada para evitar comprometer-se com projetos inadequados, já que perder tempo pode ter consequências severas. A forma como Heidegger aborda a vida, e por extensão a verdade da vida, culmina em uma conclusão poética, embora desconcertante: devemos incessantemente nos desafiar a encontrar novas maneiras de agir.

“Cidade de Gelo” (2020), do cineasta russo-americano Michael Lockshin, apresenta uma narrativa repleta de contrastes, ambientada em um cenário encantador que reflete a magia do amor. Lockshin constrói uma tapeçaria sobre a vida na Rússia no limiar dos séculos 19 e 20, um período especialmente conturbado na história do país, embora essa instabilidade não constitua o tema central da narrativa de Roman Kantor, pelo menos de forma explícita. A efervescência da sociedade russa é revelada de maneira sutil, refletida nas expressões dos dois personagens principais, um casal improvável que só se concretiza na parte final do enredo. O diretor apresenta seus protagonistas de maneira que se moldem ao entendimento do espectador, enfatizando as complexidades tanto deles quanto da própria história.

Com uma abordagem melodramática ousada, o filme se apoia em um conflito amoroso que se desenvolve lentamente, ecoando as grandes novelas da literatura russa, como as obras de Dostoiévski e Tolstói. Essa comparação se torna natural à medida que a narrativa avança. O trabalho de Lockshin possui a essência de uma versão gelada de “Romeu e Julieta”, utilizando a luta de classes como um dos elementos centrais, mas sem que isso se torne um discurso excessivamente panfletário, o que é uma feliz escolha.

Matvey, interpretado por Fedor Fedotov, é um jovem proletário que começa a sentir o ímpeto da liberdade no limiar da adolescência e sua transição para a vida adulta. Esse anseio o leva a se envolver com uma gangue de ladrões, liderada por Alexey, interpretado por Yuriy Borisov, cuja atuação envolve pequenos furtos que aterrorizam os moradores de São Petersburgo. Para ganhar a confiança do grupo, Alexey incita Matvey a invadir o quarto de Alice, interpretada por Sonya Priss, em uma madrugada que promete pouco em termos de atividade criminosa. Alice, filha de Nikolai Nikolaievitch, um baronete que ocupa um cargo no comissariado de polícia local (papel interpretado por Aleksei Guskov), se depara com a ação de Matvey e, a partir desse encontro, não consegue mais esquecê-lo. Isso a leva a rejeitar as investidas de Arkadi, o subchefe das forças de segurança, interpretado por Kirill Zaytsev.

À medida que a relação entre Matvey e Alice se intensifica, o diretor habilmente faz com que ambos inspirem um ao outro qualidades que, de outra forma, nunca teriam desenvolvido sozinhos. Alice enxerga na amizade com Matvey uma oportunidade de ser aceita no departamento de química da universidade local, enquanto Matvey se dá conta de que está desperdiçando sua vida ao lado de pessoas como Alexey e decide mudar seu caminho. O desfecho, que se dá dentro de um vagão de trem, não deixa margem para dúvidas quanto à natureza tanto cômica quanto sublime da história, lembrando a simplicidade dos personagens dos contos de fadas, um tipo de narrativa que só retorna em obras que nos permitem sonhar novamente.


Filme: Cidade de Gelo
Direção: Michael Lockshin
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10