Fup, de Jim Dodge

Fup, de Jim Dodge

Li “Fup”, de Jim Dodge e, confesso, ele não sairá da minha cabeça e nem do meu coração durante muito tempo. “Fup” não é um clássico, um livro cult ou um épico literário. É sobre a superação humana, a amizade e a relação amistosa entre pessoas e animais. Mentira! É claro que não é sobre isso também. Jim Dodge, o autor dessa preciosidade, não cairia numa obviedade dessas. Nem no passado desatento com as questões ambientais e nem hoje onde tudo, direta ou indiretamente, converge para esse tema. É um pouco de loucura associada com uma criatividade curiosamente fantástica. Pode ser encontrado em catálogos onde constam outras pérolas literárias como “Pescar Truta na América”, de Richard Brautigan ou “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”, de Robert M. Pirsig. Mais pela capacidade de criar adeptos fiéis do que pelo tema das histórias.

Jim Dodge
Fup, de Jim Dodge (Amarcord, 128 páginas, tradução de Melany Laterman)

Assim como todo fã dos Beatles ou de Raul Seixas é um fanático pelo ídolo, capaz de comprar um botão da camisa de John, esquecido em um pub de Liverpool, quando formou os Blackjacks. Ou acreditar que Raul Seixas realmente nasceu há 10 mil anos. Bom, esse tipo de fã cria uma cultura pop sólida e transforma livros ingênuos e simples em artefatos históricos impressionantemente relevantes. É o caso de “Fup”. O autor Jim Dodge construiu uma fábula (realmente é uma fábula) capturando, alegoricamente, os elementos sociais e culturais do interior dos Estados Unidos. Se olharmos para os tipos apresentados nos romances de McCarthy como, por exemplo, o recente “O Passageiro”, aqueles velhos ranzinzas, jogadores, bebedores de uísque e contadores de piadas e mentiras colossais, encontraremos as personagens de Dogde em “Fup”. O velho Jake, que produz seu próprio uísque, chamado Sussurro da Morte, cuja receita foi recebida de um índio à beira da morte, é em altíssimo grau uma mistura das figuras mais idiossincráticas, grosseiras e divertidas que a literatura americana já produziu. É um bêbado imprudente e um jogador inveterado. Sobre eles os conhecidos diziam: “Sua idade e sua ferocidade eram intimidadoras, mas era sua puta sorte, simples, descarada, abençoada e inalterada, que limpava as mesas”. O seu neto, Miúdo (Johnathan Adler Makhurst II), um homem de quase dois metros de altura, é o oposto. Simpático e distraído, ele é um construtor de cercas obstinado e sistemático. Se fosse um atendente do McDonalds receberia o título de funcionário do mês todos os meses do ano. Uma espécie de Bob Esponja, um santo estúpido. Há um porco-do-mato gigante, faminto, e imprudente que instiga a violência e afeta a vida de Jake, o vovô, e Johnathan, o Miúdo. Esse é o vilão de quadrinhos. Mas a personagem que dá o título ao livro, Fup, uma pata cheia de malemolência, que come tudo o que vê pela frente, é o achado definitivo. É ela que coloca a obra nessa lista inviolável dos livros mais queridos da literatura universal. A pata surge na vida dos dois solitários de uma forma inusitada. É salva de um suposto perigo e de um destino fatal que não está muito claro se aconteceu e isso dá o tom para um mistério intrínseco que só será revelado num ambiente fantástico ou num plot twist absolutamente louco da história. Fup conecta todos e mudo as intenções à sua volta. Fup, o leitor saberá, é uma proposta. Uma armadilha para o amor.

É verdade que existe nesse livro uma crítica nada velada à relação entre pessoas e animais. Há algum tiro que, apontado para a injustiça entre criaturas geneticamente diferentes, acerta no centro do alvo. Mas, para além disso há um humor negro, uma história ácida e uma brincadeira com a efemeridade da vida, que é o grande trunfo da narrativa. Existem momentos memoráveis que ajudam a explicar o motivo desse livrinho (não é pejorativo) ter se imprimido no imaginário. Frases ou ações do vovô Jake que são antológicas e divertidíssimas, como: “… setenta e nove anos não eram merda nenhuma para um imortal; que bebida e apostas transformavam meninos em homens”. Ou, ainda, os nomes das jogadas de Dama inventados pelo vovô Jake: “Relâmpago de Biloxi”, “Duplo Torce-Pau de King-Kong”. Por reconhecer que seu uísque era um elixir da longa vida, vovô acredita que viverá para sempre, e isso rende uma das passagens mais irreverentes e engraçadas do livro. Somado a isso está a presença do acaso como determinante do equilíbrio da vida. Vovô Jake sempre se garante com a sorte, elemento arbitrário que soluciona problemas de forma simples e direta. Mas isso é literatura. Vovô Jake também tem uma filosofia peculiar de vida que demonstra ser uma das coisas mais simbólicas e engraçadas do livro. A síntese desse ensinamento se baseia nos “Três grandes segredos de como proceder quando não se tem a mais vaga ideia do que se está fazendo”, que ele declara ser, “na ordem em que invariavelmente os listava”, “intuição, razão e desespero”.

Fup é uma pata que tem um tamanho cerca de 10 vezes maior que o dos demais patos do sítio. Não sabe voar. Vovô e Miúdo acreditam que ela precisa aprender, mas isso é impossível. É necessária uma transformação. A verdade por trás de Fup está contida nessa lição mínima. Leia e não espere moralismos, mas para curtir, é importante saber voar.


Livro: Fup
Autor: Jim Dodge
Tradução: Melany Laterman
Páginas:  128 páginas
Editora: Amarcord
Nota: 10/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.