Bolinhos de chuva para alimentar uma mente árida

Bolinhos de chuva para alimentar uma mente árida

Depois da estiagem vinha a bonança: lágrimas de contentamento. Caía a chuva sobre a grama salpicada com pepitas de granizo. Para quebrar o gelo, pus para tocar “Singin’ in the rain”, na voz de Gene Kelly. Quem não gostou do som alto foi o casal de andorinhas de fraque preto aninhadas na sanca de gesso. Sobrevoaram-me a cabeça em rasantes ameaçadores que nem de longe me amedrontaram. Privilégio ter o teto sob o qual se morava disputado por passarinhos. Era a terceira primavera consecutiva que os bichinhos procriavam na varanda da casa. Seria o mesmo casal de temporadas passadas? Uma ave abandonava outra ave antes que a morte os separasse? Pedrada. Alçapão. Morte natural. Sabia-se lá do que morria o amor. Eterno mesmo só o grande mistério da existência humana no planeta. Por que amávamos? Por que sofríamos? Para onde ia a alma, depois que escapulia da clausura do corpo. A insuficiente licença poética não permitia inferir que as almas sequer existissem. Energia vital. Isso mesmo. Energia vital desconhecida era o termo mais apropriado para um ser descrente como eu. Estava reflexivo. A luz refletida no horizonte azulado desenhava um arco-íris tênue e desbotado que referendava, finalmente, o retorno das chuvas sobre a aridez causticante dos últimos meses. Despi-me. Eu era um animal. Caminhei como um homem primitivo dentro de sua caverna de pensamentos abrigados. Eu era um poço de bipolaridade que não podia ser curado com medicamentos. Andei pela casa, a caverna contemporânea, ao som daquela canção antiga que outra coisa não fazia senão expressar o espectro de um homem arrebatado pela disparatada alegria. Estaria alegre, enfim? Eu deveria. Não tinha ninguém por perto olhando. De tal sorte que eu podia ter dançado na chuva, mas, simplesmente, preferia manter as aparências para ninguém e avaliar melhor as consequências da breve e benfazeja intempérie sobre o meu estado de espírito, mais conhecido como humor. Pensava também nas consequências da primavera. Alcancei o jardim de inverno onde uma jabuticabeira anã se esticava, se espreguiçava e florescia, apesar da escassez de água. Flores eram verdadeiros milagres. As árvores do cerrado, que floresciam durante a longa estiagem no planalto central do país, rebentavam vida pelos galhos resilientes. Com as pessoas, não. Com as pessoas era diferente. As nossas vidas eram mais áridas e mais tortuosas do que a flora inteira do cerrado brasileiro. A gente era meio cascalho e não sabia florir sob as adversidades da secura. A gente sacava as almas e secava o bagaço sob as quatro estações do ano, a despeito do sol, da chuva, das aves e das flores. A raiz de todo sofrimento era a comparação e a ultra conectividade. Vivíamos num mundo hostil, inculto e acelerado, habitado por bilhões de seres humanos abilolados acometidos por déficits de empatia. Cantar e dançar não bastava. Carecia um bocado mais de melodrama, como me comover feito o diabo, sentado na varanda de casa, a apreciar aquele afável fenômeno meteorológico há tempos esperado. Chuva na chávena de chá. Isso era mera força de expressão, a velha nódia de poesia rascante. Não gostava de chá. Mas, gostava de chuva. E de pensar, pensar e pensar. Era assim que a gente se virava, uma vez que não nascêramos nem tronco, nem galho, nem flor.