Logo nos primeiros momentos de “O Estranho que Nós Amamos”, a narrativa conduz o espectador por uma gama de sensações, que vão da inocência à brutalidade. E, sem dúvidas, é difícil imaginar outro nome senão o de Sofia Coppola para liderar um projeto com tamanha profundidade emocional. Com seu olhar crítico e sensível, Coppola explora, como poucas, as nuances da psique humana, especialmente a feminina.
A diretora mergulha em uma trama densa e cheia de riscos, centrada na figura de John McBurney, um cabo da União que, durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), é ferido por soldados confederados. Ele, então, escapa do 66º Regimento em que servia, embora sua ação seja carregada de covardia — uma vergonha que rapidamente se dissipa em meio aos acontecimentos. Na adaptação de “The Beguiled” (literalmente “O Enganado”), romance de Thomas P. Cullinan publicado em 1966, Coppola suaviza certos elementos, mas mantém a essência sombria dos personagens, espelhando, em parte, a versão cinematográfica dirigida por Don Siegel (1912-1991).
A história se passa na Virgínia, em 1864, em meio ao terceiro ano do conflito. É quando Amy, a mais jovem das alunas do internato para meninas gerido por Martha Farnsworth, encontra McBurney gravemente ferido sob um salgueiro e decide levá-lo para a casa. A interação entre Oona Laurence e Colin Farrell nessa cena é tocante, e a fotografia de Philippe Le Sourd, com seu jogo de luzes e sombras, confere uma atmosfera sombria, mas vital, mesmo em meio ao cenário de guerra. Embora debilitado, o cabo se apoia na jovem para chegar à propriedade de Farnsworth, mas desaba exausto aos pés da rígida tutora, interpretada por Nicole Kidman, chamada às pressas pela garota.
Kidman entrega uma performance complexa, revelando as camadas de sua personagem com habilidade. Sua interpretação mistura traços da enigmática Grace Margaret Mulligan, de “Os Outros” (2001), dirigido por Alejandro Amenábar, e da anti-heroína Grace Stewart, de “Dogville” (2003), obra de Lars von Trier. Ao lado de Kidman, Kirsten Dunst, uma presença constante nos trabalhos de Coppola, encarna Edwina, uma figura que ilumina, ainda que timidamente, o ambiente austero do internato. Inicialmente relutante em relação à presença masculina perturbadora de McBurney, Edwina, para sua própria surpresa, acaba se envolvendo em uma disputa silenciosa por sua atenção, especialmente com Alicia, a provocante jovem vivida por Elle Fanning.
Sofia Coppola conduz a trama de forma a destacar as ambiguidades morais de todos os personagens envolvidos, transformando “O Estranho que Nós Amamos” em uma narrativa que lembra as tragédias românticas de autores como Giovanni Boccaccio (1313-1375) e Gregório de Matos (1636-1696). Há um lirismo presente que evoca também produções como o poético “O Violinista que Veio do Mar” (2004), dirigido por Charles Dance. A virada na última sequência do filme revela as complexidades ocultas no íntimo de cada um, e o desfecho traçado por Farnsworth para se livrar de McBurney pode, paradoxalmente, provocar um sentimento de alívio no público. Afinal, é apenas um reflexo da intrincada e contraditória natureza humana.
Filme: O Estranho que Nós Amamos
Direção: Sofia Coppola
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10