“Venom: Tempo de Carnificina” parece uma história de amizade e, por que não, de amor — um amor estranhíssimo, mas amor de qualquer maneira. Em raras circunstâncias, uma produção sobre heróis e anti-heróis dos quadrinhos da Marvel foi tão feliz ao casar sequências incansavelmente ágeis e tiradas cômicas na medida, mantendo o espectador interessado no que se desenrola no eixo da trama ao passo que provoca o riso todas as vezes em que os dois protagonistas, unidos a contrapelo num mesmo corpo, acham de discutir a relação diante de nossos olhos. Andy Serkis usa de sua vasta experiência como intérprete para tirar de seu elenco reações as mais intensas e espontâneas, deixando bastante espaço para os improvisos, fundamentais em trabalhos dessa natureza. Como resultado, tem-se um filme divertido, caótico, surpreendente em suas reviravoltas e, quem diria, romântico.
Serkis retrocede um pouco e chega ao Reformatório Saint Estes, na Califórnia de 1996. Cletus Kasady, um rapaz mentalmente perturbado, está confinado numa ala especial e conversa com uma mulher a quem chama de anjo na cela ao lado. O diretor sugere um romance entre os dois, por mais que, à medida que o enredo avança, tenha-se a certeza de que Kasady é incapaz de amar quem quer que seja. Frances Barrison, a personagem de Naomie Harris, recebe dele uma aliança de papel, e então se começa a acompanhar a jornada de um homem cheio de vulnerabilidades, ruminando as mágoas que não tardarão a fazer dele um tipo perigoso e incontrolável.
Vinte e cinco anos mais tarde, na outra frente, está Eddie Brock, um jornalista investigativo de São Francisco que se esforça para sacudir o marasmo profissional, enquanto também tenta manter Venom, a criatura monstruosa que habita suas entranhas, a uma distância minimamente cautelosa, mas, para nossa sorte, não consegue. É assim que pipocam os grandes momentos de “Tempo de Carnificina”, com Eddie e seu simbionte travando verdadeiras batalhas por autonomia e largando pelo caminho um rastro de destruição que inclui a TV de dois mil dólares do hospedeiro, pérolas da colaboração de Tom Hardy ao texto de Kelly Marcel.
A essa altura, Kasady já virou Carnage (“carnificina”, em inglês) e clama por sangue. Ainda que não aguente viver apenas de galinhas e chocolate e precise da fenilalanina dos cérebros humanos, Venom é um monstrinho sensível. Ele sabe muito bem que se Eddie morrer ele não dura muito e assume a missão de derrotar seu novo rival. Na composição humana, Woody Harrelson empresta a Carnage um cinismo que se repete em sua silhueta vermelha e feroz, numa escalada vívida sobre as dores ocultas de cada um. No final, com direito a menções a Cervantes e Osho, Eddie e Venom parecem mesmo amigos inseparáveis, com a licença do trocadilho, e “Venom: Tempo de Carnificina”, uma ode à esquisitice dos relacionamentos. Quaisquer que sejam.
Filme: Venom: Tempo de Carnificina
Direção: Andy Serkis
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Ficção científica/Comédia
Nota: 8/10