As páginas mais sublimes e delicadas da literatura brasileira não estão espalhadas por todo um romance ou reunidas em um extenso poema épico. Elas encontram seu ápice em um romance desmontável, composto de capítulos que se comportam como contos autossuficientes, onde cada parte poderia, por si só, narrar um mundo. E, no entanto, o momento mais sublime de nossa literatura está diluído em um desses contos, como uma joia escondida que pulsa no meio de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos: a morte da cadela Baleia.
Esse capítulo não é apenas o ponto alto da narrativa de Graciliano, mas uma peça singular no cenário literário brasileiro. Diferentemente das grandes epopeias ou dos romances que se constroem em longos arcos de transformação, “Vidas Secas” se apresenta como um mosaico, no qual o leitor pode, quase que aleatoriamente, se perder e se encontrar em qualquer um dos capítulos. Cada peça é um retrato da vida árida e bruta dos sertanejos, desenhado com uma precisão e secura quase fotográficas. E é nessa secura que Graciliano consegue extrair o momento mais delicado e sensível de toda a obra, no qual a morte de Baleia nos confronta com uma espécie de compaixão visceral, desprovida de excessos sentimentais, mas transbordante de humanidade.
Baleia, como personagem, transcende sua condição de animal. Ela é, de certo modo, uma extensão da família de Fabiano. Mais do que isso, Baleia representa a única criatura no romance que mantém uma relação pura com o mundo que a rodeia. Enquanto os humanos de “Vidas Secas” estão enredados em suas dificuldades de expressão e comunicação, Baleia vive e sente sem a mediação da linguagem, de maneira quase primitiva, mas plena de significado.
Na cena de sua morte, há um processo que ultrapassa o simples ato de cessação da vida física. É como se, em seus últimos momentos, Baleia revelasse uma visão do mundo mais ampla, mais poética e, paradoxalmente, mais humana do que os próprios personagens humanos. Sua morte não é descrita com a grandiosidade que muitas vezes cerca a morte dos grandes heróis trágicos da literatura, mas com uma simplicidade brutal, que torna a dor palpável e universal.
Graciliano Ramos transforma a agonia de Baleia em um ponto de confluência de emoções que até então estavam dispersas pelo livro. É como se, ao morrer, a cadela reunisse em sua experiência final a dor de Fabiano, a resistência de Sinhá Vitória, o desamparo das crianças e, de certo modo, o sofrimento do próprio sertão. Mas essa dor não é comunicada de forma direta, como um lamento; ela se manifesta em gestos silenciosos, no eco da secura e no contraste entre a dureza da vida e a suavidade dos últimos pensamentos de Baleia.
Esse conto diluído é uma metáfora de resistência, pois, ao morrer, Baleia sonha com um mundo de fartura e descanso, em que os preás são abundantes e o sofrimento deixa de existir. Graciliano, ao escrever essas últimas imagens da cadela, rompe a fronteira entre o humano e o animal, permitindo ao leitor perceber uma alma não apenas no animal, mas em todo o sertão desolado e nas pessoas que ali sobrevivem. O sonho de Baleia é o último respiro de esperança, de uma visão de paraíso, que, ironicamente, só pode existir na morte.
O capítulo da morte de Baleia transcende o próprio romance e, de maneira surpreendente, insere-se no panteão das cenas mais tocantes e universais da literatura brasileira. Em poucas páginas, Graciliano Ramos faz o que muitos escritores tentam em uma vida inteira: ele nos coloca face a face com a vulnerabilidade da existência, seja ela animal ou humana, e nos convida a refletir sobre a solidariedade que emerge do sofrimento compartilhado.
Baleia é humanizada de maneira tocante por Graciliano Ramos. A cadela não é apenas um animal na história, mas uma personagem dotada de subjetividade, carregando consigo desejos, angústias e esperanças, elementos típicos de seres humanos. Ela participa da vida da família de Fabiano de uma maneira profunda, e sua perspectiva é revelada de forma sensível. Ao longo da narrativa, é por meio de Baleia que experimentamos uma certa ternura no árido universo de “Vidas Secas”, e no momento de sua morte, essa subjetividade ganha um peso quase espiritual, pois seus pensamentos finais são de afeto, sonho e esperança.
No trecho em que sua morte é narrada, Graciliano constrói uma espécie de despedida, onde o mundo cruel do sertão cede lugar a um imaginário onírico, uma promessa de fartura e abundância que Baleia jamais experimentou em vida: “A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojaram com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”.
Baleia, mesmo em seus últimos momentos, mantém um vínculo com a vida ao seu redor. O fato de “querer dormir” e “acordar feliz, num mundo cheio de preás” revela um desejo de paz, de um alívio da luta incessante que marcou sua vida. Fabiano, as crianças e o mundo ao seu redor aparecem de forma ampliada, quase mítica, como um reflexo de seus sonhos e anseios. A imagem de um Fabiano “enorme”, de preás “gordos, enormes”, é uma metáfora da fartura jamais alcançada, um sinal de que na morte ela encontra o que jamais teve em vida: a abundância e a serenidade.
Segundo Antonio Candido, Baleia é a personagem que mais se aproxima da representação simbólica do desejo de transcendência presente em “Vidas Secas”. Para Candido, a visão de Baleia, que a coloca em um “mundo cheio de preás gordos e enormes”, representa “o anseio universal por uma vida melhor, pela satisfação das necessidades básicas que são negadas sistematicamente ao homem e aos animais do sertão”. Esse trecho, presente em seu livro “Tese e Antítese”, reflete a leitura que ele faz da morte de Baleia como um microcosmo de toda a obra de Graciliano: é na cadela que se cristalizam os desejos reprimidos e as promessas não cumpridas de uma vida digna.
O momento da morte de Baleia é também o ápice de sua humanização. Ela não apenas sente dor e se agarra aos últimos resquícios de vida, mas sua mente é projetada para um futuro utópico, o que reforça sua subjetividade e o papel fundamental que ela desempenha na narrativa. Sua visão de um Fabiano e de um mundo enormes é uma maneira de escapar da dureza da vida que compartilhou com seus donos, de acessar um espaço de plenitude que, para todos os personagens do romance, parece inatingível.
Graciliano Ramos não apenas humaniza Baleia, ele transforma sua morte em um dos momentos mais emblemáticos da literatura brasileira. Através dela, somos convidados a refletir sobre a própria condição humana: a luta pela sobrevivência, o desejo por uma vida melhor e a esperança que muitas vezes só se concretiza na imaginação ou na morte. A cadela, ao morrer, escapa das amarras do sertão e, em seu último sonho, conquista o paraíso que Fabiano e sua família nunca alcançarão.
Ler “Vidas Secas” é mergulhar na aridez e na beleza contida nas páginas de um romance que revela, em cada detalhe, a profundidade da alma humana. O capítulo da morte de Baleia, em sua simplicidade e poesia, é uma síntese de toda a grandeza plástica e linguística que Graciliano Ramos constrói ao longo da obra. A secura do sertão contrasta com a riqueza emocional das personagens, e a delicadeza da linguagem transforma a brutalidade da vida em arte pura. Cada palavra, cada cena desse romance desmontável guarda a complexidade de uma vida que, mesmo sufocada pelas adversidades, carrega uma esperança muda e resistente. A leitura desse livro é um convite a perceber a poesia nas entrelinhas, a entender a dor e a resiliência de personagens que, embora distantes, tocam profundamente quem as encontra.