Não que seja uma regra, mas quando a arte consegue transcender a beleza e trazer algo com que o público se identifique de verdade, passa-se a uma outra dimensão, um lugar onde a estética está sempre a serviço da mudança. Beleza, introspecção e verdade sobram a “O Menino e a Garça”, por meio do qual Hayao Miyazaki divide com o espectador um pouco de sua vida numa fábula sobre dor, solidão, amadurecimento e velhice, e, o mais importante, em como tudo isso se estreita e em que medida. Nessa nova jornada por um mundo onírico, mas que ninguém se atreve a chamar de delirante, Miyazaki ratifica sua vocação quanto a brincar com as fantasias de uma criança adoecida por perdas e que se vê obrigada a vencer monstros e chegar viva ao outro lado, processo que cada um encara conforme suas idiossincrasias e sua força, algo que torna ainda mais próxima a angústia tão secreta do protagonista.
“O Menino e a Garça” começa com uma chuva de fogo sobre Tóquio na primeira fase da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Um hospital arde, e na sequência, Mahito Maki veste-se e sai em disparada na tentativa de salvar a mãe, que acaba morrendo. Aos doze anos, Mahito tem de lidar com a morte, Shoichi, seu pai ausente, e a possível ameaça na pele de Natsuko, a nova esposa do pai, grávida. Miyazaki sofistica o conflito central mencionando que Natsuko era irmã da falecida mãe do garoto, e da mesma forma que em “A Viagem de Chihiro” (2001), o diretor-roteirista vai elaborando as dissensões entre uma criança judiciosa e adultos levianos, uma marca do Studio Ghibli, comandado por Miyazaki. Depois de uma briga com os colegas da nova escola, Mahito se fere com uma pedra num gesto de automutilação que volta a surgir no terceiro ato, e se ele parece absorver o caos em que se transforma sua nova vida, nem tudo o que sai daí é necessariamente tétrico ou mórbido.
A garça entra como uma metáfora do mal, alimentando as ilusões do menino quanto a um reencontro com a mãe, o que envolve invadir uma torre e ter uma conversa com o tio-avô, que, dizem as velhas criadas que trabalham na nova casa de Shoichi, ainda mora lá. A cadência propositalmente arrastada da primeira metade do filme dá lugar a lances frenéticos em que Mahito, tal como a Alice de Lewis Carroll (1832-1898), desbrava seu próprio País das Maravilhas, deparando-se com pelicanos esfaimados, periquitos canibais e warawaras, algo como as criaturinhas que trabalham para Kamaji em “A Viagem de Chihiro”, com a diferença de serem brancas.
Há semelhanças nada fortuitas entre “O Menino e a Garça” e “Como Você Vive?” (1937), o romance de Genzaburo Yoshino (1899-1981) sobre um rapazote que lida com a traição ao melhor amigo enquanto digere a morte do pai, a começar pela fonética — o título original do longa é o mesmo usado por Yoshino. Ainda que este seja um trabalho eminentemente autoral, “O Menino e a Garça” e “Como Você Vive?” são feitos de memórias, e aqui o diretor relembra o passado do pai, montador de aviões durante a Segunda Guerra, e a lenta morte da mãe, quando ele era adolescente. Essa volta para casa, de alguém que procura lugar num mundo desde sempre hostil, é penosa, mas urgente. O onirismo de Miyazaki é composto de muita poesia, mas também de muita lucidez.
Filme: O Menino e a Garça
Direção: Hayao Miyazaki
Ano: 2023
Gêneros: Fantasia/Aventura/Coming-of-age
Nota: 9/10