Mais delicioso do que sorvete em um dia de calor: uma das comédias românticas mais queridas do século está na Netflix Divulgação / Twentieth Century Fox

Mais delicioso do que sorvete em um dia de calor: uma das comédias românticas mais queridas do século está na Netflix

Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como um dos eixos da vida do ser humano. Entre outros pontos, é fulcral no pensamento de Heidegger a valorização das muitas descobertas que o homem faz no decorrer de uma jornada que sempre lhe parece demasiado curta (e o é mesmo), mas que decerto vai ganhando cor, um viço inesperado. Existem pessoas que atravessam a vida sentindo as dores do crescimento, fenômeno que, por curioso que pareça, tem mesmo um fundo científico, mas que deveria restringir-se à fisiologia, e só até a cessação da puberdade. Este, definitivamente, não é o caso de Samantha Mackenzie, a personagem-título de “A Filha do Presidente”, uma menina que, para amadurecer e ter um gosto do que seja uma vida normal, é obrigada a enfrentar um poderoso semideus, seu amado pai. Numa comédia romântica despretensiosa, como há algum tempo não se vê na praça, Forest Whitaker desconstrói parcialmente o mito da patricinha fútil e alienada, sem privar-lhe do que pode haver num tipo encantador dessa natureza. É a paixão, estúpido.

Estamos todos à procura de nosso lugar no mundo, a maioria com todos os atravancos, dando com a cara na porta e quebrando a cabeça até ou serem aceitos ou se persuadirem de que alguma coisa não se encaixa e é mister continuar essa busca em outra parte. Frequentemente, chega-se a tal entendimento não sem muita dor e depois de um tempo impressionantemente longo, mas há as situações em que, mantidos o pesar e a angústia, o tempo colabora e, feito se fosse uma tormenta de dimensões sobrenaturais que cede como que por encanto ao cabo de horas e horas de terror, alguma solução começa a se desenhar no horizonte.

Katie Holmes encarna Samantha com graça, mas com prudência. Mesmo quando sente que pode perder a cabeça por James Lansome, o guarda-costas bonitão de Marc Blucas, a moça não está disposta a desonrar seu respeitável pai, o excelentíssimo presidente dos Estados Unidos da América. Michael Keaton figura como um adorável carrasco, batendo uma bola redonda com Holmes e Blucas. Como uma releitura bastante estilizada do amor indesejado, improvável e quiçá impossível, à Shakespeare em “Romeu e Julieta” (1597), “A Filha do Presidente” não pode dar errado. Principalmente se você, como eu, prefere os amores indesejados, improváveis e quiçá impossíveis.


Filme: A Filha do Presidente
Direção: Forest Whitaker
Ano: 2004
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.