Para os detratores de Xuxa é inconcebível que uma mulher que atuou despida ao lado de uma criança e foi precursora das Maria Chuteiras, seja entronizada como “Rainha dos Baixinhos”. Mas sua trajetória pode ser interpretada como a de uma pioneira das modernas demandas femininas. Xuxa foi a principal pedagoga do Brasil
Monteiro Lobato costumava ser festejado por ter escrito que “um país se faz com homens e livros”. Parecia ser uma síntese perfeita. Porém, os tempos mudaram e Lobato, dono de vastas e suspeitas sobrancelhas lupinas, teve sua natureza licantrópica revelada e foi exposto pelos militantes do politicamente correto como sendo lobo em pele de cordeiro. Acusado de racista, e por extensão de tudo o que vem atrelado a tal estigma, foi declarado inimigo público. Seu uso da palavra “homem” passou a indicar apologia ao patriarcalismo e tamanho louvor ao objeto “livro” denunciava um indisfarçável pedantismo intelectual típico das elites. Em tempos de inteligência emocional, onde a “ética do movimento” é semanalmente louvada com altos índices de audiência no programa “Esquenta”, sua até então famosa frase, tornada infame, foi jogada na vala comum da Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, e da Lei de Gérson, do ex-jogador de futebol Gérson Papagaio.
Isso só foi possível porque o Brasil é um país de doutores que falam javanês. Não por acaso, a polêmica sobre bacharéis em Direito e médicos serem chamados de “doutor” retorna de tempos em tempos. Às vezes ocorrem episódios curiosos, como quando, em março de 2011, o então meia-atacante do Flamengo Ronaldinho Gaúcho recebeu a mais alta honraria da Academia Brasileira de Letras, a medalha Machado de Assis, sendo identificado na mesa do Palácio Petit Trianon como “doutor Ronaldinho”. O que não é tão estranho, considerando que o craque é tão ou mais imortal que a maioria dos acadêmicos.
No clássico “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda demonstrou nossa tendência ao bacharelismo, o exibicionismo do anel no dedo. Não nos furtamos a distribuí-los, multiplicando os senhores dos anéis em território nacional. Um tipo de anel é particularmente honroso: o do doutorado “honoris causa”. Àquele que se ganha, conforme indica a locução latina, “por causa da honra”.
Tradicionalmente tal honraria era concedida somente para acadêmicos, como prova de reconhecimento de seus pares, mas nas últimas décadas se “popularizou”. Atualmente, em linhas gerais, trata-se de um título honorífico concedido por instituições universitárias para pessoas eminentes que, independentemente de possuírem diploma ou carreira acadêmica, se destacaram na promoção da Educação, das Artes, das Ciências, das causas humanitárias ou assemelhados, possuindo reputações ilibadas e virtudes morais incontestáveis.
De acordo com levantamento do jornal “O Estado de São Paulo”, os campeões brasileiros de títulos dessa natureza são os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio “Lula” da Silva. FHC lidera com 29 láureas, de universidades nacionais e internacionais, sendo que as primeiras 20 lhe foram atribuídas antes de exercer a presidência, por conta de sua obra sociológica. Desde que deixou o Planalto, Lula recebeu 24, também de instituições nacionais e internacionais. Consta que há novos convites. O político e escritor imortal José Sarney recebeu três, um da Universidade Estadual do Maranhão e dois de universidades romenas, coincidentemente a nação onde fica a famigerada Transilvânia. O líder religioso Edir Macedo foi laureado como Doutor “Honoris Causa” em Divindade pela Faculdade de Educação Teológica no Estado de São Paulo (FATEBOM). Controvérsias à parte, uma vez que cada um dos citados possuem seus admiradores e detratores, trata-se de casos exemplares que provam que o mundo atual está preparado para receber “doutores pela honra” com múltiplos perfis, corrigindo injustiças que eventualmente estejam ocorrendo.
Acredito que a primeira da fila das possíveis futuras doutoras “honoris causa” é a apresentadora, cantora, compositora, atriz, modelo, empresária, milionária, play girl e filantropa Maria da Graça Meneghel, popularmente e oficialmente conhecida, já que integrou o apelido ao nome, como Xuxa. A afirmação pode provocar espanto à primeira vista, mas é condizente com as perspectivas mais progressistas da cultura brasileira.
Xuxa é, provavelmente, a segunda mulher mais amada e ao mesmo tempo mais odiada do Brasil. Quando o(s) mandato(s) da presidente(a!?) Dilma terminar(em) deve recuperar o primeiro. No estatuto da fama não existe negociação: o amor e o ódio são recebidos em igual medida, e tanto a empatia quanto a antipatia costumam surgir gratuitamente. Ontem, hoje e sempre não são necessários motivos sólidos ou explicações elaboradas para um ou para outro. É a natureza da atuação da figura pública que define a forma como tais sentimentos se organizam.
No caso de Xuxa, que é mais uma personalidade célebre e carismática do que uma artista na acepção da palavra, dividem-se em duas perspectivas básicas: adoração quase religiosa de uma lado e acusações de charlatanismo e proselitismo do outro. O alcance de sua celebridade é tamanho que o meio termo é rara exceção, praticamente não há indiferença. Em função do caráter essencialmente conservador da sociedade brasileira, para ambos os lados, o ponto chave do julgamento da biografia de Xuxa é a exposição pública de sua nudez. Tal como Eva, a mulher primeva, Xuxa é medida a partir do impacto da descoberta de suas partes pudendas.
Para seus detratores é inconcebível que uma mulher que posou nua, atuou despida ao lado de uma criança e foi precursora das Maria Chuteiras, seja entronizada como “Rainha dos Baixinhos”. Soma-se a isso, o fato de que Xuxa seria uma cantora que não sabe cantar, uma atriz que não sabe atuar e uma apresentadora limitada. A personificação viva de tempos nos quais a fama artística não depende necessariamente do talento, mas de bons agentes e contatos. Para essa parcela do público médio, sua participação em campanhas pela vacinação contra a poliomielite, contra a violência infantil, contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, é menos ativismo e mais jogo de cena proselitista. Seu DVD “Brincadeiras” (2007), onde resgata cantigas, jogos e brinquedos tradicionais, não faz dela uma folclorista pop, mas uma vilipendiadora do passado. Mais recentemente os incrédulos passaram a acusá-la de ter se tornado uma senhora mitômana, por conta de revelações que fez sobre sua infância, pedidos de casamento de estrelas internacionais e telefonemas misteriosos para amores do passado. Recusam-se a acreditar em uma dama que foi onipresente nas paredes das borracharias.
Do outro lado, para o grupo de admiradores de Xuxa, sua nudez pública é um fato do passado que não intervém no presente ou no futuro, tendo sido um estágio de provação para que as portas do paraíso lhe pudessem ser abertas. Seguem a lógica de Francisco de Assis, que conscientemente desceu o mais baixo possível na escala de valores, experimentando tudo o que o mundo secular pudesse oferecer, para, enfim, dar o salto a partir do fundo do poço e alcançar as alturas da santidade. A exposição de seu corpo não é maculada, pois serviu para levá-la para onde deveria ir. Considerações freudianas à parte, equipara-se com a nudez inocente de uma criança que corre livre pelo jardim (do Éden?). Como Dante, na “Divina Comédia”, precisou passar pelo inferno e purgatório para chegar ao Paraíso.
Nesse sentido, é fundamental lembrar que o polêmico filme “Amor, Estranho Amor”, lançado pelo cineasta Walter Hugo Khouri em 1982, não é uma vulgar pornochanchada, mas um sofisticado drama psicológico, com os celebrados Tarcísio Meira, Vera Fischer e Mauro Mendonça no elenco. A personagem de Xuxa, a ninfeta Tamara, não é uma devoradora de homens, como imagens descontextualizadas podem fazer crer, mas uma criança jogada à força no submundo dos adultos. Trata-se de uma adolescente de alegados 15 anos que tem sua pretensa virgindade leiloada entre os frequentadores de um bordel sofisticado. Xuxa tinha 17 durante as filmagens, sendo, portanto, legalmente, tão menor de idade quanto seu parceiro de cena, de 12. Por esse ponto de vista, Xuxa teria sido vítima, não algoz. Quem a vitimou? Difícil ser conclusivo, mas o fato é que na década de 1980, filmes que apresentavam a pedofilia como temática eram fartamente premiados nos festivais de cinema patropis. O exemplo mais célebre talvez seja “A Menina do Lado” (1987), com Reginaldo Faria e Flávia Monteiro como protagonistas.
Seguindo essa linha hermenêutica, é fundamental notar que após o relacionamento com um futebolista que negou assumir a paternidade de uma de suas filhas, Xuxa envolveu-se com um piloto conhecido por falar com Deus. As imagens televisionadas do casal vendem uma imagem de comovente inocência, sugerindo que os dois transcenderam o elemento carnal, que venceram os limites da vida, do tempo e do espaço, figurando entre as grandes histórias de amor do Ocidente, ao lado de Romeu & Julieta, Tristão & Isolda, Abelardo & Heloisa. A Rainha e o Campeão. Com a trágica morte do piloto, foi reconhecida como viúva do profeta, do messias da velocidade. O fato de haver outra candidata ao título era irrelevante, como o tempo provou.
No turbilhão do confronte entre essas duas concepções surgem as mais inusitadas fofocas, como a de que Xuxa teria realizado um pacto com o Diabo, o Demônio, o Tinhoso, o Capeta, o Cão, o Cramunhão, Satã, Satanás, o Velho, o Rabudo, o Chifrudo, o Pai das Mentiras, o Senhor das Moscas, Lúcifer, Mefisto, Mefistófeles, Azazel, Belial, Pazuzu, David Jones, o Macaco de Deus, o Coisa Ruim, Àquele do Qual Não se Pode Falar o Nome. Os partidários dessa teoria conspiratória poderiam até justificar que sua maior rival seria uma criatura “angelical” enviada para combatê-la. Se não chegou a ameaçar sua hegemonia foi porque um mero taxi jamais poderá alcançar as alturas de um disco voador.
Descartando o absurdo lógico da ideia em si, tal lenda urbana não deixa de possuir um complexo sentido simbólico. Ao firmar o suposto pacto com o Demônio, Xuxa equipara-se ao lendário personagem Fausto. Não o encorpado Fausto Silva dos domingos preguiçosos, mas o sábio alquimista da lenda medieval, que se aproximou das artes ocultas para alcançar o conhecimento ilimitado. Existem muitas versões da história, mas três se destacam pela genialidade literária. A mais antiga é “A Trágica História do Doutor Fausto”, que o dramaturgo inglês Christopher Marlowe escreveu entre 1588 e 1592. Em seguida veio o poema trágico “Fausto, Uma Tragédia”, que Goethe, o maior dos escritores alemães, publicou em 1808, tendo a segunda parte sido lançada em 1832. Na versão de Marlowe, mais fiel às raízes medievais da lenda, Fausto cai em desgraça, morre e perde sua alma vendida ao demônio Mefistófeles. Goethe, um grande homem do espírito moderno, faz Fausto arrepender-se do pecado do orgulho intelectual, enganar Mefistófeles e alcançar a redenção. No romance “Doutor Fausto”, que Thomas Mann lançou em 1947, Fausto é representado pelo compositor Adrian Leverkühn, cuja vida e obra seriam uma alegoria ao processo que levou a Alemanha ao nazismo. O sobrenome do personagem, Leverkühn, significa “Viva Audaciosamente”, algo que Xuxa, uma descendente de italianos, nação politicamente fascista e aliada dos germânicos na Segunda Grande Guerra, fez e faz.
A percepção de qual Doutor Fausto a apresentadora Xuxa mais se aproxima vai depender do grupo a que se pertence. O certo é que, em determinado ponto de sua carreira, Xuxa realmente foi tutelada por uma sinistra figura cujo nome começava com M. Mas é igualmente certo que em anos recentes livrou-se dessa influência. Redenção goethiana? “Decadência”? O fato é que desde então seu sucesso gigantesco parece diminuir ano a ano, a ponto das hipóteses de aposentadoria ou retirada de cena ao estilo Greta Garbo serem constantemente aventadas como soluções dignas para manutenção do mito.
Curiosamente, para além dessas concepções dualistas e emotivas derivadas do grande público, é interessante notar que os maiores detratores de Xuxa encontram-se entrincheirados entre os intelectuais. São eles que denunciavam que suas roupas curtas e infantilizadas remetiam diretamente ao personagem Lolita, de Nabokov. Que suas marias-chiquinhas representavam um discurso de submissão ao patriarcalismo. Que seu programa era um apelo ao consumismo capitalista. Que as louras paquitas, em seus uniformes paramilitares de soldados de chumbo, faziam apologia ao projeto eugenista ariano, sendo uma ofensa ao caráter multiétnico do país. Que apelidar um anão de Praga fomentava o bullying contra as minorias. Que transformar um mosquito chamado Dengue em mascote era mostrar desprezo diante do sofrimento da população vitimada por doenças tropicais. Que chamar uma bela mulata de Bombom é reproduzir o estereótipo de que a mulher negra só serve para ser devorada na cama, na mesa e no banho. Que o boneco Moderninho, a despeito do nome e do visual multicolorido, era conservador e reacionário, como prova o fato dele usar gravata borboleta e suspensórios. Que a superexposição a que obrigou sua filha desde o nascimento era altamente nociva para constituição de sua personalidade enquanto cidadã consciente e socialmente integrada.
Sou incompetente para julgar os méritos de tantas e tão profundas e complexas acusações, até porque nunca fui um “Baixinho da Xuxa”, estando mais para viúvo do Balão Mágico (Simony, Fofão, Jairzinho, lembram?), que foi retirado da grade de programação para entrada do “Xou da Xuxa”, em junho de 1986. Em todo caso, acredito não ser impossível que se Jacques Derrida se debruçasse sobre o caso poderia desconstrui-lo. Ainda que não se possa negar a coerência interna das acusações, paradoxalmente, é possível subverter seus sentidos e aproximá-las de diversos aspectos do discurso libertário com os quais os detratores intelectualizados de Xuxa se apresentam na academia, na imprensa e nas ruas. Subvertendo a expectativa, mas sem deixar de ater-se aos fatos, a trajetória de Xuxa pode ser interpretada como a de uma pioneira das modernas demandas femininas e pós-modernas.
Os exemplos são muitos: sabe-se que Xuxa começou a chamar atenção de fato no início da década de 1980, quando passou a ser vista em companhia de Pelé. A acusação de que ela se aproveitou do Rei para ficar em evidência na mídia é, por definição, falaciosa. Como uma jovem de origem humilde, inculta e ainda desconhecida poderia se aproveitar de um homem maduro, rico e famoso sem que ele estivesse disposto a aceitar seus termos, estabelecendo um contrato de vantagens mútuas? Não temos aqui uma inversão do papel submisso da mulher, caminhando em direção a tão sonhada igualdade dos gêneros? Ainda mais importante do que isso seria o desafio ao estigma social que naquela época representava os relacionamentos inter-raciais. Nesse caso, seu pioneirismo libertário é alto-evidente.
Xuxa continuou quebrando tabus quando literalmente escolheu o homem com o qual queria ter um filho, subvertendo a ordem patriarcalista em matriarcalista. O feito se torna ainda mais importante quando levamos em conta a origem árabe do progenitor, tornando o ato um verdadeiro consenso civilizacional de união Ocidente e Oriente. Edward Said, autor de “Orientalismo”, aplaudiria. Os eventos subsequentes ao processo de gravidez foram ainda mais vanguardistas. Em 28 de julho de 1998, quando deu à luz Sasha, o tão criticado destaque dado ao parto no “Jornal Nacional” longe de representar mera espetacularização da vida das celebridades, verdadeiramente antecipou a atual concepção contemporânea de privacidade, onde as pessoas comuns compartilham cada passo de suas vidas cotidianas nas redes sociais, via textos e imagens divulgados no facebook, instagram, youtube, twitter.
Suas infames roupas curtas, que a ajudaram a ganhar fama, ao invés de simplesmente representarem a degradação do corpo feminino, podem ser interpretadas como antecipações dos modelos estéticos exibidos nas ruas em marchas pelos direitos civis, onde fica claro, por meio de slogans diversos, que a mulher pode e deve usar seu corpo como bem lhe aprouver. Se a opção for por expô-lo isso não significa necessariamente que se trata de um convite ao desejo lascivo. Trata-se de um sinal de avanço nos costumes e da liberdade de expressão.
Em todo caso, se o vanguardismo sócio moral de Xuxa não representa subsídios suficientes para justificar seu doutorado “honoris causa”, uma vez que afetam a coletividade de modo tangencial, sendo atitudes pessoais que eventualmente se difundiram via mídia de massa, sua titulação justifica-se por algo que foi abraçado e difundido de modo espontâneo. Nesse quesito destaco um elemento, que fez muito barulho, algumas vezes sem pronunciar nenhuma palavra: a canção “Abecedário da Xuxa”.
Na segunda metade da década de 1990, quando cursei graduação na universidade, o estudo de Libras, a língua brasileira de sinais, não constava nos currículos dos cursos de licenciatura. Sequer havia um debate mais aprofundado sobre sua inclusão como disciplina obrigatória. Nessa época, diferentemente de hoje, não havia amplos projetos de inclusão social para os deficientes auditivos. A sociedade se calava: não via, não ouvia, não falava. Certamente grupos isolados estavam trabalhando, tanto em esfera administrativa quanto pedagógica, mas tinham pouca ressonância.
Mas, como disse Woody Allen, “a vida não imita a arte, imita a má televisão”, tudo começou a mudar em escala macro em 1988, quando foi lançado pela gravadora Som Livre o disco “Xou da Xuxa 3”, produzido pelo quarteto Michael Sullivan, Paulo Massadas, Cid Guerreiro e Lincoln Olivetti. Mantendo o mesmo nível dos primeiros, dois clássicos do gênero infantil, foi o álbum mais vendido do ano e permanece um dos mais vendidos de todos os tempos. Dentre os hits figuraram “Ilariê”, o politicamente correto “Brincar de Índio” e a politicamente incorreta “O Praga é uma Praga”. A décima faixa era “Abecedário da Xuxa”, assinada por César Costa Filho e Souza. É o tipo de música que todos conhecem, mesmo a contragosto. Basta alguém começar a cantar que toda a letra se desembaraça dos fios da memória: “A de amor, B de baixinho, C de coração, D de docinho, E de escola, F de feijão…”.
Se no primeiro disco, de 1986, Xuxa conseguiu produzir uma opção viável ao aparentemente insubstituível “Parabéns para você”, dessa vez o objetivo era alfabetizar. Tanto na escola regular quanto no ensino especial. Em suas apresentações ao vivo, Xuxa acompanhava a letra mostrando sua versão em Libras. A dança de seus dedinhos, numa coreografia minimalista, tornou-se mania nacional. Como resultado, o “Abecedário da Xuxa” passou a ser usado em salas de aula das mais diversas escolas e faculdades do Brasil. Todos sabiam gesticular alguma das letras.
O sucesso da música fez com que milhares de pessoas, destacadamente professores, se interessassem em aprender Libras. Ao mesmo tempo, em função da projeção da imagem da apresentadora e por influência política da Fundação Roberto Marinho, não restam dúvidas que de alguma forma instigou o debate oficial sobre o tema, fomentando a futura integração da disciplina Libras nos currículos das licenciaturas. No começo, não só pela música ter sido um dos principais catalisadores do processo, mas pela simples falta de material didático especializado, a maioria dos professores de Libras beneficiava-se de seu potencial ao mesmo tempo educativo e lúdico. Nesse tempo Xuxa foi a principal pedagoga do Brasil.
Porém, com o passar do tempo e a natural evolução do processo didático, a lacuna de material especializado foi sendo suprido. O resultado foi que o “Abecedário da Xuxa” passou a ser cada vez menos utilizado. Em muitos casos não apenas era desconsiderado como ganhava a alcunha de vulgarização do tema. Paulatinamente, a canção e sua intérprete foram “despidas” de seus méritos passados. Mas a Rainha está mesmo nua?
Um doutorado “honoris causa” para dona Maria da Graça, por suas contribuições ao ensino especial, seria uma forma de corrigir essa injustiça histórica. Não que Xuxa precise de mimos, pois talvez até já tenha sido excessivamente adulada (“lembre-se que és mortal, lembre-se que és mortal” repetiam escravos segurando coroas de louros sobre a cabeça de generais romanos durante seus desfiles em triunfo): foi apontada como uma das pessoas mais influentes e belas do mundo, ganhou uma medalha de honra na ECO 2008 por seu ativismo socioambiental e já foi enredo de Escolas de Samba cariocas três vezes, pela Unidos do Cabuçu em 1992 e Caprichosos de Pilares em 2004 e 2011. Reconhecimento PPP: profissional, político e popular. Mas, para ser justo, ainda falta o acadêmico.
Alguma instituição universitária dará esse grande passo para a mulher e pequeno passo para a humanidade (ou vice e versa)? O ainda fechado universo acadêmico brasileiro vai se permitir tamanha ousadia? A medalha Machado de Assis concedida a Ronaldinho Gaúcho é o limite, ancorado na concepção de que se o boxe é a Grande Arte para os intelectuais norte-americanos, o futebol é para os brasileiros? Além daí não se vai?
Ou talvez o problema seja simplesmente de filiação intelectual. O final da letra apregoa que “X o que que é? / É Xuxa! / Z é Zum zum zum zum zum / Vamos cantar / Vamos brincar / Alegria pra valer / O abecedário da Xuxa / Vamos aprender”. É possível que esse apelo extremo pela necessidade de se aprender o abecedário possa ser interpretado como uma versão festiva e infantil de “um país se faz com homens e livros”. Livros são inúteis sem o abecedário. Xuxa, inadvertidamente, aproximou-se demais de Monteiro Lobato? Os mais desconfiados irão verificar que sua biografia revela um comprometedor passado licantrópico: foi eleita a Pantera do ano de 1982. O minúsculo biquíni preto substituindo o terno de Monteiro. A maquiagem de bigodes felinos substituindo as vastas sobrancelhas lupinas de Lobato. Outras evidências surgem, como os cabelos cada vez mais louros. As recentes farpas trocadas via imprensa com, nas palavras de Nelson Rodrigues, o “Negro Épico” Pelé podem ser mal interpretadas. Tudo é possível, pois a patrulha ideológica, e o baixo astral, não conhecem limites. Invadem até mesmo os muros inexpugnáveis da Xanadu chamada Casa Rosa.