Quem imaginaria que, quase dois séculos após sua morte, Jane Austen (1775-1817) se tornaria uma referência popular em comédias românticas voltadas ao público adolescente, reformuladas pelo cinema de Hollywood para atender aos gostos modernos? “As Patricinhas de Beverly Hills”, por exemplo, pode até se distanciar do significado original da obra “Emma” (1815), mas traz consigo um espírito que conversa com o público contemporâneo. Austen nos apresentou a história de uma jovem aristocrata, envolta nas frivolidades da alta sociedade inglesa do século 19, que descobre uma habilidade peculiar em meio à superficialidade ao seu redor. Já o filme de Amy Heckerling, inspirado nessa narrativa, adapta o enredo para o contexto de Beverly Hills nos anos 90, moldando-o para um novo público.
Austen, no entanto, parecia já prever que seu tempo era limitado. Aos 42 anos, já sofrendo com os sintomas da doença de Addison, uma condição autoimune ainda desconhecida na época e que a levaria à morte em 1817, a escritora investiu na criação de uma personagem que refletia críticas afiadas e perspicazes sobre a sociedade de sua época. Emma, em sua forma original, encarna uma jovem cheia de contradições e privilégios, e é essa mesma essência que Heckerling traz para sua adaptação, com Cher Horowitz como a protagonista. Heckerling, claro, toma liberdades criativas, guiando a narrativa por seus próprios caminhos e muitas vezes desviando da profundidade estilística que Austen empregava, mas o filme se sustenta ao capturar o espírito rebelde e contraditório da protagonista.
Cher, como sua contraparte literária, vive imersa em um mundo de luxo e superficialidade, acreditando que o mundo gira ao seu redor e que os homens existem para servi-la. Filha de Melvin Horowitz, um poderoso advogado interpretado por Dan Hedaya, ela desfruta de uma vida de excessos, cercada de roupas de grife e privilégios. Mas, apesar da aparência de futilidade, Cher, assim como Emma, revela aos poucos uma profundidade inesperada. Nesse contexto, entra em cena seu meio-irmão Josh, vivido por Paul Rudd, que desafia suas percepções e impulsiona a trama. O filme, então, constrói uma narrativa envolvente ao explorar a dinâmica entre Cher e aqueles que a cercam, como sua melhor amiga Dionne, interpretada por Stacey Dash, uma versão igualmente privilegiada, mas com uma personalidade mais assertiva.
A partir dessa estrutura, Heckerling constrói uma sátira leve sobre a juventude americana dos anos 90, repleta de estereótipos de nerds, desajustados e populares. A relação entre Cher e seus amigos, assim como suas tentativas de unir dois professores solitários, interpretados por Wallace Shawn e Twink Caplan, são artifícios que a diretora utiliza para adicionar humor e leveza à trama. Mas, sob essa camada superficial de comédia, reside uma crítica sutil à forma como os valores e relacionamentos são moldados por questões de status e aparências.
Quando Tai Frasier, a novata desajeitada interpretada por Brittany Murphy, entra em cena, o filme adota uma nova direção. Tai, que representa uma figura à margem dos padrões de Beverly Hills, é moldada por Cher, que busca transformá-la em alguém mais alinhado com os padrões de sua escola. Essa relação, embora repleta de clichês e previsibilidades, guarda momentos interessantes, especialmente quando a química entre Silverstone e Murphy aflora. A transformação de Tai e a trajetória de Cher proporcionam um olhar sobre a pressão da conformidade e a superficialidade que permeia as interações sociais.
Apesar de cair em alguns lugares-comuns e perder fôlego ao longo do segundo ato, “As Patricinhas de Beverly Hills” tem seus méritos ao retratar uma juventude caótica e confusa, capturando de maneira peculiar o espírito de uma época. O filme também provoca uma reflexão sobre como as versões contemporâneas de histórias clássicas podem ganhar novos significados ao dialogar com as gerações atuais. Ao fim, Cher Horowitz pode não ser Emma Woodhouse em sua totalidade, mas ambas compartilham o mesmo encanto problemático de suas respectivas eras.
E, mesmo em tempos tão distintos, a essência de uma jovem enfrentando o peso de seus privilégios e contradições ressoa, seja nos salões da alta sociedade inglesa ou nos corredores de uma escola de Beverly Hills.
Filme: As Patricinhas de Beverly Hills
Direção: Amy Heckerling
Ano: 1995
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10