“Nunca Deixe de Lembrar”, dirigido e roteirizado por Florian Henckel von Donnersmarck, foi uma das grandes apostas ao Oscar, concorrendo nas categorias de melhor filme internacional e melhor fotografia. Inspirado na vida do renomado pintor alemão Gerhard Richter, o longa tece uma narrativa complexa e impactante, ainda que o artista, famoso por manter sua vida pessoal resguardada, tenha negado qualquer autorização para o uso de seu nome ou de suas obras. De fato, Richter é uma figura de destaque no mundo da arte contemporânea, com suas pinturas alcançando valores exorbitantes e sendo exibidas nos museus mais prestigiados. No entanto, a publicidade em torno do filme utilizou habilmente referências indiretas ao pintor, mesmo sem sua aprovação oficial.
Embora Richter seja notoriamente reservado e raramente apareça em público, sua reação ao filme foi de clara desaprovação. Em entrevistas, ele admitiu não ter visto o longa, criticando duramente o trailer por deturpar sua biografia ao transformá-la em uma espécie de thriller. Além disso, expressou ao diretor que revisitar esse período de sua vida seria emocionalmente insuportável, reabrindo feridas de um passado traumático. Apesar das críticas do artista, o filme conquistou tanto a crítica quanto o público, o que ressalta a tensão entre a obra e a pessoa que a inspira.
O cerne do filme está na representação das memórias e identidades que, na obra de Richter, emergem principalmente em suas pinturas fotográficas desfocadas, símbolo de como o passado é percebido: uma combinação de lembrança e distorção. O enredo do filme se baseia nesses elementos, explorando como as memórias da infância do artista, aqui representado pelo personagem Kurt Barnert (vivido por Tom Schilling), moldaram não apenas sua arte, mas também sua própria existência.
A narrativa se desenrola em uma jornada de mais de três horas, nas quais o espectador acompanha os principais eventos da vida de Barnert. Embora o filme entrelaçe ficção e realidade de maneira fluida, muitos detalhes biográficos permanecem reconhecíveis, como o nascimento de Richter em Dresden, em 1932, durante a ascensão do regime nazista. Um dos pontos mais sensíveis e importantes da trama é a relação entre Kurt e sua tia Marianne (no filme, rebatizada como Elisabeth May, interpretada por Saskia Rosendahl). A tia, uma figura central na vida do jovem pintor, sofreu nas mãos do regime nazista devido a seu diagnóstico de esquizofrenia, fato que teve um impacto devastador em Kurt e influenciou profundamente sua visão de mundo e sua obra.
O filme também não se limita a retratar o impacto da infância de Kurt; ele se expande para cobrir sua vida adulta como um artista em busca de identidade em meio a um cenário político caótico. Inicialmente, o vemos como um pintor de murais no estilo socialista na Alemanha Oriental, uma fase marcada pela Guerra Fria. Mais tarde, ao desertar para o Ocidente, ele busca se afirmar na Academia de Belas-Artes de Dusseldorf, onde sua arte começa a encontrar uma voz única e inovadora, conectada ao movimento artístico contemporâneo da época.
Além de traçar a trajetória artística de Kurt, o filme traz uma virada crucial ao explorar sua vida amorosa. O relacionamento com Ellie, uma estudante de moda, serve como um ponto de ruptura entre o passado e o presente, levando Kurt a confrontar fantasmas do passado que nunca deixaram de assombrá-lo. Essa interseção entre amor e trauma é tratada com uma sutileza ácida, revelando como a vida, muitas vezes, reserva ironias amargas.
Em um nível mais profundo, Donnersmarck utiliza a biografia ficcional de Barnert para realizar uma crítica contundente aos regimes totalitários. A trajetória de Kurt é um exemplo claro de como os extremismos políticos tentam silenciar a expressão artística e individual. Seja o nazismo, que ridiculariza artistas “degenerados”, ou o socialismo da Alemanha Oriental, que limita os criadores a uma estética imposta, o filme ilustra como essas forças sufocam a criatividade e a liberdade de expressão.
A direção de fotografia, assinada por Caleb Deschanel, junto com a trilha sonora de Max Richter, eleva o filme a um patamar estético que impressiona tanto pelo rigor técnico quanto pela capacidade de transmitir a profundidade emocional da história. Cada cena é meticulosamente elaborada para capturar a atmosfera tensa e ao mesmo tempo sublime que permeia a vida de Kurt, e a música de Richter complementa perfeitamente essa experiência, criando um ambiente sonoro que amplia a carga dramática do filme.
“Nunca Deixe de Lembrar” é mais do que uma simples cinebiografia ou uma obra de ficção com elementos reais. É um retrato multifacetado da luta de um artista por identidade em um mundo moldado por forças históricas implacáveis. O filme nos convida a refletir sobre a fragilidade da memória e o poder da arte em transcender os limites impostos pelo tempo e pela política.
Filme: Nunca Deixe de Lembrar
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance/Biografia
Nota: 10/10