Em 1840, Mary Anning, paleontóloga inglesa de renome, embarca em uma jornada para redescobrir sua própria existência em “Ammonite”, filme que traz à tona tanto sua contribuição científica quanto os desafios emocionais que enfrentou. No coração dessa narrativa, está o autoabandono e a eventual redenção de Anning, cuja vida se entrelaçou com a busca incansável por fósseis de criaturas que habitaram o planeta milhões de anos atrás. Mais do que um retrato de sua dedicação à paleontologia, o filme de Francis Lee explora as nuances emocionais e os dilemas pessoais que moldaram sua trajetória.
Anning, que viveu entre 1799 e 1847, dedicou sua vida a desvendar os segredos dos amonites, cefalópodes que habitaram os mares há cerca de 400 milhões de anos. Esses organismos, surgidos no Período Devoniano, desempenharam um papel crucial no ciclo evolutivo que permitiu a transição de formas de vida do ambiente aquático para a terra firme. Essa busca pelo entendimento do passado fascinava Anning, que não apenas se destacava na identificação de fósseis, mas também desenvolveu um método rigoroso para catalogar suas descobertas, consolidando seu nome na história da ciência.
No entanto, o filme não se limita a narrar as realizações científicas de Anning. À medida que a história avança, a cinebiografia mergulha em uma paixão avassaladora que transforma a vida da paleontóloga. Essa virada emocional, embora central ao desenvolvimento do enredo, gerou controvérsias, uma vez que a veracidade desse romance nunca foi comprovada. Contudo, essa liberdade criativa não prejudica a memória de Anning, cuja contribuição à ciência é inegável, ainda que seu nome tenha sido, por muito tempo, obscurecido.
O retrato de Mary Anning em “Ammonite” é o de uma mulher que jamais se cansou de sua rotina aparentemente monótona em Lyme Regis, onde vivia com sua mãe, Molly. Todos os dias, ela partia em busca de fósseis, enfrentando condições adversas, mas mantendo sua determinação inabalável. O filme sublinha a invisibilidade de seu trabalho, muitas vezes atribuído a outros, como o paleontólogo Henry Hoste Henley. Francis Lee abre o filme de maneira sutil, com sons de água escorrendo, sugerindo a luta silenciosa de Mary contra as limitações impostas a ela, tanto pela sociedade quanto pelas circunstâncias de sua vida.
A introdução de Roderick Murchison, um colega de Londres, e sua esposa Charlotte, marca um ponto de virada na trama. Charlotte, interpretada por Saoirse Ronan, rapidamente assume um papel central, formando um vínculo crescente com Mary, vivido de maneira contida e intensa por Kate Winslet. À medida que esse relacionamento se desenrola, o filme aprofunda-se na intimidade entre as duas, algo que nunca foi comprovado historicamente, mas que, no contexto do filme, oferece uma poderosa metáfora para a repressão emocional e social que Mary enfrentava.
O relacionamento entre Mary e Charlotte, seja ele real ou fictício, é retratado com sensibilidade, mas também com momentos de intensa fisicalidade, que contrastam com a serenidade das vidas que levavam. Embora o filme utilize esse romance como eixo emocional, seu verdadeiro foco está na solidão e na luta interna de Anning, uma mulher cuja genialidade foi, em grande parte, ignorada em sua época, e que foi forçada a viver em silêncio.
“Ammonite” é, em última instância, uma reflexão sobre o papel da mulher no século 19, uma época em que a submissão ao patriarcado era a regra, e o talento de figuras como Anning era eclipsado por homens que detinham o poder. Mesmo após quase dois séculos de sua morte, Mary Anning permanece uma voz silenciada, sua importância científica reconhecida, mas suas lutas pessoais e emocionais ainda à margem da história oficial. O filme de Francis Lee tenta, de alguma forma, resgatar essa voz, trazendo à tona a complexidade de sua vida e seu legado, tanto científico quanto humano.
Filme: Ammonite
Direção: Francis Lee
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama/Biografia
Nota: 8/10