“O Poço” capturou todos os olhares no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em setembro de 2019, ano em que foi lançado, embora a consagração do filme de Galder Gaztelu-Urrutia tenha vindo por meio de um tal Midnight Audience Award, o Prêmio da Audiência da Meia-Noite, rótulo cheio de ocultas idiossincrasias (mas nem tanto). O mau juízo dos organizadores do TIFF, induzidos ao erro pela perversa lógica do mercado de querer enquadrar tudo em classificações tão rígidas quanto equivocadas, parece ter ignorado alguma coisa muito elementar, básica a ponto de apenas os leigos insones e malditos terem sido capazes de absorver — o que vira e mexe ocorre no próprio Oscar, aliás. Depois de cinco anos de maturação, “O Poço 2” chega na hora certa, apostando que a humanidade tenha aprendido a valorizar a liberdade de tempos pós-pandemia e, quiçá, também tenha despertando para a urgência de se repensar o consumo.
Há alterações pontuais no roteiro de Gaztelu-Urrutia, David Desola e Egoitz Moreno quanto ao que o público e a crítica assistiram no TIFF há um lustro. No primeiro filme, rodado num prédio abandonado em Franca, cidade no nordeste de São Paulo, os 333 pavimentos de uma prisão vertical abrigam uma fauna tão diversa que junta no mesmo ambiente estelionatários, assassinos e estupradores, mas também gente como Goreng, que só precisava de um pouco de sossego para ler um livro e de condições que o inspirem a largar o cigarro. O personagem, interpretado com dedicação absoluta e irrestrita por Ivan Massagué, não tarda a perceber que o edifício é cortado por uma imensa cavidade que abriga uma estrutura bastante larga, dentro da qual se sobe e desce uma mesa posta com o banquete que alimenta os prisioneiros. Os cativos do térreo são os únicos que usufruem do que é servido da forma como os pratos saem da cozinha, em tudo parecida à de um restaurante indicado pelo Guia Michelin. Depois, os detentos que se virem com as sobras deixadas pelos comensais do andar inferior, e assim continua, até que o mecanismo e a comida subam até o último pavimento. Revirada, coberta de dejetos, asquerosa.
Aqui, o personagem de Massagué dá lugar a Perempuan, e embora não se consiga precisar quanto tempo se passou de uma história para a outra, a moça já está perfeitamente adaptada àquele ambiente inóspito. O pulo do gato aqui é onservar as reações de Perempuan, conduzida com zelo por Milena Smit, e seu relacionamento com Zamiatin, o troglodita encarnado pelo ex-boxeador Hovik Keuchkerian. Os dois começam no 24º andar, e tal como Goreng e Trimagasi, o companheiro com quem dividia a cela vivido por Zorion Eguileor, Perempuan e Zamiatin precisam descobrir um modo de conviver em meio à fome e à imundície, sem literalmente se devorarem. Gaztelu-Urrutia vale-se desse argumento para reforçar o caráter distópico de sua metáfora anticapitalista anterior, agora insinuando que pode haver amor na Plataforma, naquelas condições. O gênero humano é imprevisível, mas a História é pródiga em exemplo que deixam claro que onde falta ordem falta todo o resto.
Filme: O Poço 2
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Ano: 2024
Gêneros: Thriller/Terror/Suspense
Nota: 8/10