Nada é mais grotesco do que a indiferença

Nada é mais grotesco do que a indiferença

Havia um clima meio shimbalaiê na exposição organizada na Oficina Cultural Oswald de Andrade, para resgatar o senso de comunidade no Centro de São Paulo, estraçalhado pela cultura do condomínio. Numa instalação, despontava a pergunta: “o que você deseja para o seu vizinho?” O público era convidado a responder por escrito. Num dos post-its grudados na obra, uma frase resumia um desejo cortante: “Desejo que meus vizinhos tenham teto”.

Rabada, livro de contos de Alessandro Araujo lançado há pouco pela editora Patuá, traz implícito um querer mais elementar. Antes de casa, as pessoas que agonizam nas esquinas do centro da maior cidade do País precisam de subjetividade. Se no vaivém da experiência burguesa a morte vira paisagem, não há humanidade possível. Assim andam as coisas no espaço onde o escritor habita, nos arredores do Minhocão.

Rabada
Rabada, de Alessandro Araujo (Editora Patuá, 93 páginas)

Ao verter 18 contos em 93 páginas, Araujo parece ter encontrado uma voz própria e madura nesse terceiro livro — publicou ainda “Pro Santo e Outras Perdições” (2012) e o romance “Longe de Todas Aquelas Nuvens” (2020). As frases curtas, com períodos que às vezes prescindem do verbo, criam uma narrativa fragmentada, que a rigor é uma demonstração de confiança na capacidade do leitor em produzir sentido. Restam textos pragmáticos, sem adereços, onde violência e ternura coexistem, exatamente como na existência dos personagens.

O domínio narrativo fica claro nos cortes temporais da ação. De uma tarde numa loja, um personagem pode aparecer já no parágrafo seguinte refestelado numa cama, mirando a parede, sem prejuízo ao que se quer contar. Há tensão em cada sentença e, por vezes, quando ao folhear vislumbramos o fim do conto, é preciso uma certa disciplina para não corrermos os olhos, em ansiedade pelo desfecho. Mas Araujo se recusa a nos carregar pela mão porque crê na força da história, que se completa mesmo cruzando vácuos. Coisa de Modiano.

Vê-se um quê de Saramago no conto “Correios” — que também chamou a atenção de Marçal Aquino, que assina o saboroso prefácio de “Rabada”. Nele, Jonas vive dias de sr. José, protagonista de “Todos os nomes”, tentando espantar o tédio dos dias ultrajando privacidades, com consequências nefastas e, como todo bom texto, múltiplas interpretações.

Saímos do livro também afeiçoados por Moacir, que pontifica em três contos como uma espécie de metonímia da miséria do assalariado, a quem nem a CLT redime. Quem já precisou enfrentar rotinas hediondas, sob a liderança de gente cretina, vai se identificar com o cara.

“O Natal é bom”. “No verão é sem ódio”. Os personagens dão indícios de confiar na força do tempo para cessar a angústia. Mas o calendário não dá conta. Nem o fantástico, que aparece no conto que empresta nome ao livro, oferece a redenção. A rua consegue ser mais asfixiante que as moradias de “três pequenos cômodos”, claustrofóbicas. Ao contrário do que os mais apressados possam supor, não estamos diante de uma empreitada literária sombria. 

Há muito do grotesco na atmosfera de “Rabada”, porém nada soa mais vil do que a indiferença diante da agonia alheia. Nas epígrafes extraídas de Graciliano Ramos e Rubem Fonseca, Araujo admite que escreveu “Rabada” com raiva. Mas prova que esse sentimento, tão mal falado pelos hipócritas forjados em meditação, ioga e pão de fermentação natural, também irriga a esperança.

Basta que desassossegue os anestesiados.