A obra-prima de Tim Burton, que lembra Harry Potter e As Crônicas de Nárnia, é o melhor filme que estreou este mês na Netflix

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Grandes cineastas compuseram trabalhos que se debruçaram sobre as lembranças mais doces — e nem tanto — de personagens ainda por completar o processo de amadurecimento, dos mestres Ingmar Bergman (1918-2007), diretor de “Fanny e Alexander” (1982), a Federico Fellini (1920-1993), com “Amarcord” (1973), passando pelos contemporâneos Luca Guadagnino, de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e Paolo Sorrentino, responsável por A Mão de Deus (2021). “O Lar das Crianças Peculiares” não deixa de ser o encadeamento de memórias de um garoto que sente a falta de quem amou e não se conforma com essa perda. Muito à vontade num território que conhece como poucos, Tim Burton traduz em imagens o romance homônimo publicado por Ransom Riggs em 2011, sem abdicar do encantamento do que Riggs apenas sugere. O roteiro de Jane Goldman se concentra nas descobertas de Jacob Portman, repentinamente sozinho depois que o avô morre, mas, como tudo sempre tem uma compensação, é por meio dele que o protagonista desvenda um segredo de quase oito décadas, muito bem-guardado ao longo dos anos.

Situações extremas têm o condão de fazer com que meninos se tornem homens, mas no fundo sempre resta o candor que deixa tudo um pouco menos austero, por mais duvidoso — e mesmo inadequado — que pareça. A imaturidade da criança, sua franqueza arrebatadora diante de cenários com os quais adultos lidamos tão mal, sua facilidade em adaptar-se a conjunturas funestas, esses predicados que todos temos até certa altura da vida, são de grande valia naqueles momentos em que a realidade se apresenta como uma espécie de teste, fustigando-nos, cruel, até que não possamos mais suportar e nos rendamos, fazendo parte do novo e triste mundo que nos cerca.

Traumas de infância têm o condão de perdurar por um tempo que muitas vezes parece inalcançável, até que começam a render memórias incômodas demais, prolongando um sofrimento que se retroalimenta, cresce do que julgávamos morto, nos envenena e, por fim, quem morre somos nós. A adolescência é a fase da vida em que devemos fazer amigos e loucuras. Isso se aplica a todo mundo, exceto a Jake. Abe, o avô, aposentou-se do abrigo para cuidar dele, mas há algum tempo é o menino quem se encarrega de tudo, apenas pela recompensa breve e muito particular de ser chamado de Tygrysku, “tigre”, em polonês, pelo velho. Asa Butterfield encarna essa figura quase etérea, fascinada pelo transcendentalista Ralph Waldo Emerson (1803-1882), com o carisma habitual, oscilando de uma melancolia inveterada a um júbilo igualmente visceral. Burton guarda para o final a explicação para o título, remetendo a um lugar onde garotos invisíveis convivem com monstros. A peregrinação de Jake, viajando por portais mágicos ocultos em posições estratégicas até chegar a Tóquio e daí a outras dimensões, poderia estar em “Os Ensaios Completos e Outros Escritos”, de Emerson. Mas essa é outra história.


Filme: O Lar das Crianças Peculiares
Direção: Tim Burton
Ano: 2016
Gêneros: Fantasia/Aventura
Nota: 8/10