Último dia para assistir na Netflix: a obra-prima de Kathryn Bigelow, vencedora de 6 Oscars Ed Araquel / Summit Entertainment

Último dia para assistir na Netflix: a obra-prima de Kathryn Bigelow, vencedora de 6 Oscars

Os conflitos armados que assolam diferentes partes do mundo, em sua grande maioria, parecem tão inúteis quanto devastadores, mas a “sabedoria da guerra” permanece uma verdade perversa e paradoxal. Ela contorna evidências e transforma antagonistas em protagonistas, disseminando consequências que são mais destrutivas do que as causas que as originaram. Entretanto, por mais insensato que possa parecer, devemos admitir que alguns confrontos são inevitáveis, e, surpreendentemente, dentro desse caos extremo, surgem lampejos de reflexão, às vezes carregados de cinismo, que nos permitem entender a vida sob o fogo cruzado. Essas pequenas revelações podem ser desconfortáveis, mas revelam nuances da experiência humana em situações de violência extrema e descontrole.

Kathryn Bigelow, diretora de “Guerra ao Terror” (2008), escolhe iniciar seu filme com uma epígrafe de Chris Hedges, um experiente correspondente de guerra e vencedor do Prêmio Pulitzer. Hedges sintetiza a fascinação mortal que a guerra exerce sobre aqueles que a vivenciam: “A emoção do combate é um vício forte e letal; a guerra é uma droga.” É uma frase que encapsula o magnetismo sombrio da guerra, capaz de viciar até mesmo as mentes mais racionais e sensíveis. Eu, pessoalmente, nunca estive em uma guerra, mas desde jovem me fascinava com a ideia de ser como Winston Churchill ou Ernest Hemingway, duas figuras marcadas pela proximidade com conflitos. Apesar de nunca ter realizado esse sonho infantil, não é difícil imaginar como o combate poderia se tornar um vício, especialmente para personalidades obsessivas e megalomaníacas, que buscam emoções fortes para validar sua própria existência.

Mesmo sem ter ido ao front, minha conexão com a guerra sempre foi presente através da literatura e do jornalismo. Durante meus estudos, mergulhei no livro “A Primeira Vítima”, de Phillip Knightley, uma obra que investigava como, em tempos de guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. É interessante como essa constatação, tão amplamente aceita, tem uma origem incerta, sendo atribuída tanto ao dramaturgo grego Ésquilo quanto ao político americano Hiram Johnson. Não importa quem cunhou a frase; o fato é que, durante as guerras, a manipulação da informação se torna tão letal quanto as bombas. Nessa linha de pensamento, a guerra moderna, com seus bilhões de dólares em gastos e suas intermináveis campanhas, nada mais faz do que reiterar essa máxima: a verdade é a primeira a cair.

William James, o personagem principal vivido por Jeremy Renner em “Guerra ao Terror”, é um reflexo dessa ambiguidade. Ele não se apresenta como um herói tradicional; na verdade, ele é um anti-herói, um homem obcecado por desarmar bombas, mas também pelo perigo que o cerca. Ele compreende o funcionamento das armas que tenta neutralizar e, ao longo do filme, revela uma mentalidade quase transcendental em relação aos seus criadores. James está cercado por inimigos dispostos a explodir a si mesmos e quem mais estiver por perto, e seu trabalho, literalmente, é caminhar sobre um campo minado. O filme, ao retratar essa realidade, nos mostra que a guerra pode ser, paradoxalmente, uma mistura de perigo e atração.

A performance de Jeremy Renner como o sargento James destoa das representações convencionais de soldados no cinema. Ele não está interessado em ser um patriota; seu foco é no risco, na adrenalina, e essa inclinação quase suicida não só coloca sua vida em perigo, mas também a de seus companheiros. Em uma das cenas mais marcantes do longa, James resgata seu colega Owen, vivido por Brian Geraghty, depois de colocá-lo em uma situação de risco desnecessária, deixando-o fora de ação por meses. Owen é o soldado que representa a guerra como um jogo para o soldado americano médio, um lugar onde se busca aventura, diversão e uma forma distorcida de redenção. O filme, ao explorar essas dinâmicas, vai além da simples narrativa de combate, tocando em temas como a alienação e a perda de senso de propósito.

O roteiro de Mark Boal não poupa críticas a essa mentalidade, e é no personagem de Sanborn, interpretado por Anthony Mackie, que encontramos o contraponto ideal para a obsessão de James. Sanborn é o soldado que segue ordens, que entende a guerra de maneira pragmática e cuida da segurança de seus colegas. Enquanto James é imprudente, Sanborn representa a disciplina e a razão. A tensão entre os dois personagens é um dos aspectos mais interessantes do filme, e suas interações nos levam a refletir sobre a natureza da liderança e do sacrifício em meio ao caos da guerra.

Kathryn Bigelow, com sua visão aguçada para os conflitos, não apenas dirigiu “Guerra ao Terror” de maneira magistral, mas também repetiu seu sucesso com “A Hora Mais Escura” (2013), que narra a caçada a Osama bin Laden. Seu talento em transformar a guerra em uma narrativa envolvente lhe rendeu o Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor, superando até mesmo “Avatar”, de James Cameron. Numa indústria dominada por homens, Bigelow provou que histórias de guerra podem ser contadas de forma inovadora e profunda por uma mulher, subvertendo expectativas e conquistando seu lugar entre os grandes.

“Guerra ao Terror” se estabelece, assim, como um prelúdio para “A Hora Mais Escura”, mostrando que, para muitos, a guerra pode ser mais do que uma experiência traumática — pode se tornar um vício ou uma forma de reafirmação pessoal. O personagem William James personifica essa visão, enquanto Bigelow e Boal constroem uma narrativa que transcende o campo de batalha, oferecendo uma meditação sobre a natureza humana e suas tendências destrutivas.


Filme: Guerra ao Terror
Direção: Kathryn Bigelow
Ano: 2008
Gêneros: Guerra/Ação
Nota: 9/10