Thriller de suspense na Netflix foi assistido por 50 milhões de espectadores no primeiro mês de estréia Divulgação / Netflix

Thriller de suspense na Netflix foi assistido por 50 milhões de espectadores no primeiro mês de estréia

Por que figuras corruptas, especialmente os vigaristas, possuem um charme tão irresistível? Esse é o ponto inicial que o filme “Eu Me Importo” de J Blakeson lança ao espectador, provocando uma reflexão entre o desconforto e uma certa admiração. Sim, admiração. Além de nos confrontar com o fascínio incontestável que trapaceiros de todos os tipos exercem sobre pessoas honestas, incapazes de imaginar construir fortunas ao custo do prejuízo alheio, a obra levanta outras questões, que voltarei a explorar mais adiante.

Blakeson se destaca ao retratar com maestria a complexidade e o mistério de personagens femininas, um talento que brilha em conjunto com a atuação de sua protagonista. Em “O Desaparecimento de Alice Creed” (2009), o diretor já demonstrava seu potencial para trabalhar com argumentos sólidos, elencos afinados e orçamentos modestos, ainda que o sucesso financeiro não tenha sido imediato.

A bilheteria, no entanto, raramente é o único critério para medir a qualidade de um filme, e Blakeson, ciente disso, não se deixou abater. Onze anos depois, com experiência e outros projetos respeitáveis em seu currículo, ele decidiu trazer à tela uma trama verossímil, porém provocadora. Mas, para que o projeto decolasse, ele contava com um trunfo: Rosamund Pike.

Pike, conhecida por sua habilidade em interpretar personagens que desafiam limites, brilha mais uma vez. Em “Garota Exemplar” (2014), ela já havia impressionado como a esposa neurótica de Ben Affleck, em um enredo que também explorava o sequestro. Agora, em “Eu Me Importo”, papel que lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz, ela encarna Marla Grayson, uma mulher astuta e impiedosa, com garras afiadas prontas para atacar. Grayson é uma mistura fascinante entre Mildred Ratched, a infame enfermeira de “Um Estranho no Ninho” (1975), e Lara Croft, a destemida heroína de “Tomb Raider”.

Ao descobrir um nicho lucrativo no ramo da curatela de idosos e pessoas vulneráveis, Marla manipula um sistema corrompido, envolvendo médicos, cuidadores e advogados que facilmente ignoram a ética quando o saldo bancário cresce. Sua personagem é uma verdadeira distorção do sonho americano, odiada por muitos, mas admirada por outros tantos.

A trama de “Eu Me Importo” coloca o espectador frente a frente com escolhas morais desconfortáveis. O que você prefere ser: um predador ou uma presa? Quem dita as regras ou aquele que é constantemente manipulado? Essas são as provocações centrais do filme, amplificadas pelo cinismo de Marla Grayson. A protagonista aposta alto, sem medo de perder, mas erra o alvo ao escolher sua próxima vítima. A idosa aparentemente indefesa, escolhida pela doutora Karen Amos (Alicia Witt), parecia a presa perfeita: rica, relativamente jovem, com sinais de declínio mental facilmente convertíveis em um diagnóstico falso de Alzheimer. No entanto, essa jogada revela-se um erro fatal.

Jennifer Peterson, interpretada por Dianne Wiest, transforma-se em um verdadeiro pesadelo para Grayson. Sem parentes conhecidos, Peterson parece o alvo ideal, mas guarda uma conexão perigosa: Roman Lunyov, um mafioso russo vivido por Peter Dinklage, que a vê como uma figura materna e mobiliza seus capangas para resgatá-la das garras de Grayson. O que se desenrola a partir daí é um thriller de ação, onde a fortuna e o poder tornam-se os protagonistas silenciosos.

Marla e Roman tentam se destruir mutuamente, mas no final, uma reviravolta inesperada evidencia que, no mundo de Grayson, o dinheiro é capaz de amenizar qualquer ressentimento. O desfecho do filme, no entanto, reserva uma última surpresa: a vingança de Feldstrom (Macon Blair), filho de uma paciente negligenciada por Grayson, finalmente põe fim à trajetória da agora multimilionária empresária, de forma crua e inesperada.

O roteiro de Blakeson avança de uma visão mais ampla para uma análise minuciosa das camadas sombrias de cada personagem. Marla Grayson, sem dúvida, ocupa o epicentro dessa escuridão. Mas dizer que o filme é um teste para o talento de Rosamund Pike seria um equívoco. A atriz é mais do que capaz, com sua interpretação impecável, de elevar a narrativa a novos patamares. Embora comercializado de forma simplista como uma comédia,

“Eu Me Importo” é, na verdade, uma sátira ácida, com uma farsa evidente desde os primeiros momentos até o desfecho abrupto. O magnetismo irresistível de Marla já havia capturado o público a essa altura, e, de forma quase contraditória, muitos se viram torcendo por ela, apesar de sua moral questionável. No fim, a pergunta que permanece é: por que, em uma história sem heróis, somente Marla Grayson encontra sua ruína? A resposta está, talvez, nas nuances do poder e no preço final que ele exige.

O filme, ao nos deixar sem respostas fáceis, é um espelho sombrio das ambições humanas, onde o dinheiro e a ambição são as forças motrizes, e aqueles que se arriscam demais nem sempre saem ilesos.


Filme: Eu Me Importo
Direção: J Blakeson
Ano: 2020
Gênero: Comédia/Drama/Thriller
Nota: 8/10