Por que figuras corruptas, especialmente os vigaristas, possuem um charme tão irresistível? Esse é o ponto inicial que o filme “Eu Me Importo” de J Blakeson lança ao espectador, provocando uma reflexão entre o desconforto e uma certa admiração. Sim, admiração. Além de nos confrontar com o fascínio incontestável que trapaceiros de todos os tipos exercem sobre pessoas honestas, incapazes de imaginar construir fortunas ao custo do prejuízo alheio, a obra levanta outras questões, que voltarei a explorar mais adiante.
Blakeson se destaca ao retratar com maestria a complexidade e o mistério de personagens femininas, um talento que brilha em conjunto com a atuação de sua protagonista. Em “O Desaparecimento de Alice Creed” (2009), o diretor já demonstrava seu potencial para trabalhar com argumentos sólidos, elencos afinados e orçamentos modestos, ainda que o sucesso financeiro não tenha sido imediato.
A bilheteria, no entanto, raramente é o único critério para medir a qualidade de um filme, e Blakeson, ciente disso, não se deixou abater. Onze anos depois, com experiência e outros projetos respeitáveis em seu currículo, ele decidiu trazer à tela uma trama verossímil, porém provocadora. Mas, para que o projeto decolasse, ele contava com um trunfo: Rosamund Pike.
Pike, conhecida por sua habilidade em interpretar personagens que desafiam limites, brilha mais uma vez. Em “Garota Exemplar” (2014), ela já havia impressionado como a esposa neurótica de Ben Affleck, em um enredo que também explorava o sequestro. Agora, em “Eu Me Importo”, papel que lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz, ela encarna Marla Grayson, uma mulher astuta e impiedosa, com garras afiadas prontas para atacar. Grayson é uma mistura fascinante entre Mildred Ratched, a infame enfermeira de “Um Estranho no Ninho” (1975), e Lara Croft, a destemida heroína de “Tomb Raider”.
Ao descobrir um nicho lucrativo no ramo da curatela de idosos e pessoas vulneráveis, Marla manipula um sistema corrompido, envolvendo médicos, cuidadores e advogados que facilmente ignoram a ética quando o saldo bancário cresce. Sua personagem é uma verdadeira distorção do sonho americano, odiada por muitos, mas admirada por outros tantos.
A trama de “Eu Me Importo” coloca o espectador frente a frente com escolhas morais desconfortáveis. O que você prefere ser: um predador ou uma presa? Quem dita as regras ou aquele que é constantemente manipulado? Essas são as provocações centrais do filme, amplificadas pelo cinismo de Marla Grayson. A protagonista aposta alto, sem medo de perder, mas erra o alvo ao escolher sua próxima vítima. A idosa aparentemente indefesa, escolhida pela doutora Karen Amos (Alicia Witt), parecia a presa perfeita: rica, relativamente jovem, com sinais de declínio mental facilmente convertíveis em um diagnóstico falso de Alzheimer. No entanto, essa jogada revela-se um erro fatal.
Jennifer Peterson, interpretada por Dianne Wiest, transforma-se em um verdadeiro pesadelo para Grayson. Sem parentes conhecidos, Peterson parece o alvo ideal, mas guarda uma conexão perigosa: Roman Lunyov, um mafioso russo vivido por Peter Dinklage, que a vê como uma figura materna e mobiliza seus capangas para resgatá-la das garras de Grayson. O que se desenrola a partir daí é um thriller de ação, onde a fortuna e o poder tornam-se os protagonistas silenciosos.
Marla e Roman tentam se destruir mutuamente, mas no final, uma reviravolta inesperada evidencia que, no mundo de Grayson, o dinheiro é capaz de amenizar qualquer ressentimento. O desfecho do filme, no entanto, reserva uma última surpresa: a vingança de Feldstrom (Macon Blair), filho de uma paciente negligenciada por Grayson, finalmente põe fim à trajetória da agora multimilionária empresária, de forma crua e inesperada.
O roteiro de Blakeson avança de uma visão mais ampla para uma análise minuciosa das camadas sombrias de cada personagem. Marla Grayson, sem dúvida, ocupa o epicentro dessa escuridão. Mas dizer que o filme é um teste para o talento de Rosamund Pike seria um equívoco. A atriz é mais do que capaz, com sua interpretação impecável, de elevar a narrativa a novos patamares. Embora comercializado de forma simplista como uma comédia,
“Eu Me Importo” é, na verdade, uma sátira ácida, com uma farsa evidente desde os primeiros momentos até o desfecho abrupto. O magnetismo irresistível de Marla já havia capturado o público a essa altura, e, de forma quase contraditória, muitos se viram torcendo por ela, apesar de sua moral questionável. No fim, a pergunta que permanece é: por que, em uma história sem heróis, somente Marla Grayson encontra sua ruína? A resposta está, talvez, nas nuances do poder e no preço final que ele exige.
O filme, ao nos deixar sem respostas fáceis, é um espelho sombrio das ambições humanas, onde o dinheiro e a ambição são as forças motrizes, e aqueles que se arriscam demais nem sempre saem ilesos.
Filme: Eu Me Importo
Direção: J Blakeson
Ano: 2020
Gênero: Comédia/Drama/Thriller
Nota: 8/10