É perceptível em “Legítimo Rei”, filme que inaugurou o Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2018, a intenção de causar impacto. Com várias tomadas aéreas capturadas por drones, o vestuário é fiel aos padrões do século XIII, e as batalhas, essenciais em obras desse tipo, foram meticulosamente coreografadas. David Mackenzie demonstra seu talento ao criar uma obra notável, mesmo que a temática, por vezes espinhosa e obscura, não desperte no público brasileiro a mesma paixão por questões universais como a ambição, a consciência social, a decadência moral de uma família e a falência do sonho americano — temas recorrentes em produções recentes como “A Qualquer Custo” (2016) e “Encarcerado” (2013). Mackenzie se destaca por extrair do elenco o que é essencial para enaltecer a narrativa escolhida, transformando momentos aparentemente triviais em pequenos épicos, num piscar de olhos. Se o público não capta essa sutileza, a perda é dele.
Mackenzie utiliza a presença magnética de Chris Pine para tornar mais acessível a trajetória de Roberto I (1274-1329), o monarca escocês que se destacou na luta contra a coroa inglesa no início do século XIV. Pine representa com maestria o ideal de um governante que, com gestos paternais, atende às demandas de seu povo, antecipando-se ao populismo que conhecemos hoje nas repúblicas. Naquela época, a Escócia era um lugar cuja essência era desconhecida até mesmo por seus habitantes. Roberto The Bruce, apesar de estar disposto a levar seu país a um longo período de instabilidade sociopolítica após suas vitórias, enfrenta resistência de todos os estratos sociais, do nobre ao plebeu. A aparente paz social dá lugar à agitação que toma conta da população escocesa, e “Legítimo Rei” captura essa transição através de um plano-sequência habilidoso, revelando aspectos da personalidade autoritária e machista do rei.
O filme evidencia a eterna rivalidade entre Roberto The Bruce e Edward I, o príncipe de Gales interpretado por Billy Howle, e a trama, coescrita por Mackenzie e outros quatro colaboradores, se destaca por sua complexidade. Pine e Howle alternam os papéis de vilão e herói ao longo da narrativa, refletindo a realidade da vida, que raramente é preta e branca. Essa dinâmica mantém o público entretido, enquanto o soberano escocês ganha uma nova dimensão sob a direção de Mackenzie, que retrata Roberto The Bruce como um líder que organiza uma série de guerrilhas contra um império muito mais poderoso. O diretor imprime um tom ufanista, especialmente ao mostrar a vitória escocesa sobre os súditos de Eduardo II, precursor de Henrique V, também retratado em “O Rei” (2019), de David Michôd.
Embora “Legítimo Rei” ecoe a narrativa do herói destemido enfrentando um inimigo colossal — uma história que remonta a tempos antigos, como a famosa batalha de Davi contra Golias —, o filme serve como um registro rigoroso das tensões entre escoceses e ingleses. Essas rivalidades ressurgem com a figura de Mary Stuart (1542-1587), outra monarca escocesa que desafiou a Inglaterra sob o governo de Elizabeth I (1533-1603), um evento representado em “Duas Rainhas” (2018), de Josie Rourke. Trezentos anos após a vitória de Roberto The Bruce sobre Eduardo II, Jaime VI, descendente do rei escocês, é coroado também como rei da Inglaterra, mostrando como a história é cheia de reviravoltas surpreendentes.
Uma das interpretações possíveis do filme toca na necessidade de expor as feridas persistentes das monarquias, que, ao se despojar de suas aparências, se revelam semelhantes a ditaduras que ainda afligem muitos países no século XXI. Roberto The Bruce vivencia essa realidade de maneira intensa, mantendo-se no poder enquanto sua esposa, Elizabeth de Burgh, é sequestrada pelas forças inglesas. Florence Pugh, ao construir sua personagem de maneira tocante, intensifica a dor do rei e ressalta o dilema enfrentado por líderes ao longo da história. Governar implica um sacrifício pessoal, exigindo a renúncia a desejos comuns.
Essas narrativas de épocas remotas, quando os poderosos demonstravam um certo apreço por seus súditos, continuam a fascinar o público moderno, mesmo que este não consiga sempre penetrar as camadas da história. Sete séculos após a era de Roberto I, a Escócia, mesmo com sua estrutura democrática e uma constituição fundamentada em valores republicanos, tem desde 1952 uma monarca, Isabel II, cuja longevidade a torna quase tão histórica quanto Elizabeth I. Como observou Giuseppe Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo”, certas mudanças ocorrem para que a essência permaneça inalterada.
Filme: Legítimo Rei
Direção: David Mackenzie
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10