Um pequeno diamante perdido na biblioteca da Netflix: o filme que você precisa descobrir

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Toda expressão artística, em algum ponto, é uma derivação da vida real. Mesmo as pinturas mais abstratas refletem experiências e impressões da mente do artista, influenciadas por suas vivências, conscientes ou inconscientes. Da mesma forma, o cinema depende de acontecimentos minimamente verossímeis, por mais delirantes que possam parecer, para sustentar suas histórias. E a literatura, com sua capacidade única de tecer enredos fictícios sobre bases concretas, proporciona ao ser humano uma constante elevação espiritual, enquanto este tenta se equilibrar na realidade. Tanto o leitor, que busca compreender a narrativa que se desdobra à sua frente, quanto o escritor, que procura capturar e traduzir essas experiências, encontram-se nesse dilema. A verdade é que a arte em si é um enigma. Por mais talentoso que um indivíduo seja, não há garantia de que ele decifre o segredo da composição perfeita, enquanto outros, aparentemente menos dotados, conseguem capturar a essência da vida com simplicidade e precisão. A arte, como a vida, não segue regras justas e nem tem a obrigação de corrigir desigualdades.

Baseado na obra de Javier Cercas, o filme “O Autor” explora as angústias e dilemas que afligem todo escritor, ou aspirante a tal, ao longo de sua trajetória. Lançado em 2017, o longa dirigido por Manuel Martín Cuenca oferece uma perspectiva única sobre um homem comum que, de repente, descobre uma habilidade peculiar: a manipulação das pessoas ao seu redor. Este homem é Álvaro, interpretado por Javier Gutiérrez, que entrega uma atuação visceral, premiada com o Goya de Melhor Ator. Álvaro, notário de meia-idade, decide abandonar sua carreira ao perceber que, apesar de sua competência em influenciar os outros, sua própria vida é um caos. Seus problemas profissionais, exacerbados por atrasos constantes e baixa produtividade, levam seu chefe a sugerir que tire uma licença. No entanto, ao retornar ao trabalho dois meses depois, Álvaro descobre que foi demitido e, pior, sem direito a compensação, já que foi ele quem decidiu se afastar.

Paralelamente, seu casamento com Amanda, interpretada por María León, uma escritora de sucesso (mesmo que de romances populares), está em frangalhos. Amanda, flagrada em uma situação comprometedora com outro homem, impulsiona Álvaro a sair de casa e se mudar para um novo apartamento. Esse movimento marca o início de sua tentativa de dar à sua vida o controle que sempre almejou, ainda que de maneira distorcida. Cuenca, ao conduzir a narrativa, cria um ambiente de crescente tensão psicológica, confinando Álvaro em um apartamento quase vazio, onde sua obsessão pela escrita começa a crescer de maneira desordenada. A entrada de Lola, a zeladora solitária vivida por Adelfa Calvo (que também foi premiada com o Goya de Melhor Atriz Coadjuvante), traz à tona o lado mais perturbador de Álvaro, e é nesse ponto que o roteiro, co-escrito por Cuenca e Alejandro Hernández, introduz o suspense de maneira contundente.

O novo prédio, administrado de forma excessivamente zelosa por Lola, serve como palco para a busca pela verdade, proposta pelo professor de escrita criativa de Álvaro, Juan, interpretado com vivacidade por Antonio de la Torre. Após uma crítica severa de Juan, que condena o hábito de Álvaro de tentar contar histórias vazias, ele resolve, finalmente, se dedicar seriamente à escrita, seguindo o conselho do professor. Inspirado pelas interações com seus vizinhos — os imigrantes mexicanos Irene (Adriana Paz) e Enrique (Tenoch Huerta) —, Álvaro encontra o material necessário para sua obra. No entanto, sua crescente obsessão o leva a cruzar limites éticos, e ele se envolve em situações perigosas, até culminar no incentivo a um crime que sacode todo o edifício. Em uma reviravolta tardia, mas brilhantemente arquitetada, Álvaro acaba sendo o único suspeito preso, trazendo à tona o caos que ele mesmo alimentou.

“O Autor” se destaca por utilizar todos os recursos disponíveis para construir uma narrativa rica e espirituosa, consolidando-se como um dos filmes mais inteligentes do cinema recente. A complexidade dos personagens poderia facilmente se tornar um obstáculo, tanto para o diretor quanto para o público, mas Cuenca conduz a história com precisão. Escrever, como qualquer ofício, pode ser extenuante, mas também oferece momentos de grande satisfação, principalmente quando as palavras fluem. Às vezes, o verdadeiro talento está em ter paciência, uma virtude que, como mostra o filme, nem sempre está ao alcance de todos.


Filme: O Autor
Direção: Manuel Martín Cuenca
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Drama/Suspense
Nota: 9/10