Tentarei não ser injusto porque a injustiça é um dos maiores defeitos do ser humano. A maturidade me ensinou, dentre outras coisas, a não menoscabar o esforço alheio e a buscar sempre as palavras certas ao elaborar uma crítica, a fim de que ela se torne uma contribuição genuína e não ofensiva. Espero que essas premissas funcionem aqui.
No último sábado, almocei em casa e fui fazer a sesta em frente à TV, como habitualmente procedo nos dias em que estou de folga. Sintonizei um canal líder de audiência e me deparei com a transmissão, ao vivo, de uma partida de futebol entre mulheres. Eram duas e trinta da tarde. Um calor de tirar pica-pau do oco. Os termômetros marcavam quase quarenta graus. A umidade relativa do ar estava na casa dos doze por cento, “clima de deserto”, que é como se diz para dimensionar a absurda escassez de água na atmosfera.
As equipes femininas disputavam a final da Taça das Favelas, um relevante evento esportivo de cunho social voltado para as comunidades mais carentes da sociedade, uma iniciativa que certamente deve ser apoiada e enaltecida. Ocorre que a referida partida de futebol sucedia no momento mais quente do dia, no horário de pico do forte calor e da baixíssima umidade. Inclusive, um período que as autoridades sanitárias recomendavam fosse evitado pelas pessoas, a fim de mitigar os efeitos deletérios sobre a saúde corporal.
As imagens das adolescentes correndo atrás da bola baquearam-me. Na verdade, fui tomado pelo sentimento de indignação. Não saberia afirmar de quem partiu a iniciativa, mas, tenho a mente fértil e até poderia dar um palpite. Mas, não farei isso aqui. É óbvio que o horário escolhido para a peleja foi desarrazoado, para não dizer, cruel. Sentado no sofá, com o ventilador apontado para a testa, eu penava, eu padecia sob os efeitos desagradáveis das péssimas condições climáticas propiciadas pela longa estiagem e pela fumaça resultante das queimadas criminosas dos piromaníacos. Seriam eles “patriotas disfarçados”?
Essa comiseração pelo sofrimento das jovens atletas, que poderia ser mitigado, caso o jogo ocorresse no final da tarde ou no período noturno, impeliu-me à redação desta crônica, uma espécie de nota de desagravo em prol das meninas. “Antes nesse horário do que em horário nenhum”. Cheguei a supor que alguém da comissão organizadora pensasse estar fazendo uma espécie de “favor imensurável à causa feminina”, ao optar pela execução do jogo num horário de baixa audiência da grade televisiva, a despeito do calor excruciante e da aridez. Tomara que o quesito “economia de dinheiro” não tenha funcionado com parâmetro para submeter a mulherada aos riscos de uma insolação.
Na sequência da disputa entre as meninas, sucedeu a final masculina. Outra pergunta que não quer se calar é a seguinte: por que os garotos tiveram o privilégio de fazer o jogo de fundo num horário, digamos, mais privilegiado, menos insalubre para a prática esportiva ao ar livre? Não quero imaginar que essa decisão estratégica tenha a ver com as questões de gênero. Porque, fosse este um parâmetro de razoabilidade, as garotas, anatômica e fisicamente desfavorecidas em relação aos homens, deveriam realizar o jogo de fundo, sob condições mais amenas. Se bem que, submeter os rapazes àquele suplício vespertino, seria também uma enorme insensatez.
Acho que ninguém da comissão organização vai ler essa crônica, muito menos, explicar os porquês de se disputar uma partida de futebol num horário tão hostil. Percebe-se claramente que a mídia, as federações e a corrupta CBF têm melhorado a visibilidade e o reconhecimento do futebol feminino nos últimos tempos. Parece que, finalmente, aos olhos do capitalismo, o futebol praticado por mulheres está começando a ficar financeiramente interessante. É assim que os negócios funcionam: “sem mi-mi-mi, sem frescura e com muito pragmatismo econômico”.
Luciano do Valle foi o maior locutor esportivo de todos os tempos. Foi também um homem visionário, um empresário bem-sucedido e um dos maiores desportistas brasileiros. Além de apoiar várias modalidades esportivas praticadas pelas mulheres, Luciano foi pioneiro ao dar a elas reconhecimento e visibilidade. Naquela época, a qualidade do futebol praticado pelas moças era motivo de desprezo e de piada pela maioria dos homens. Muitos marmanjos lacravam que futebol não era coisa para mulher. Não cheguei a ecoar esse tipo de declaração ignorante, preconceituosa, mas, confesso que não conseguia assistir aos jogos por conta da notória deficiência técnica das atletas. Ninguém nascia sabendo. Era preciso apoio. E pouca gente apoiava iniciativas que visavam equalizar direitos entre homens e mulheres.
O futebol feminino ganhou notoriedade no Brasil por causa do esforço das atletas, das suas famílias, dos seus treinadores e, também, pelo diletantismo de personas visionárias como o falecido locutor Luciano do Valle. Não sejamos ingênuos. Não sejamos hipócritas. De maneira geral, o business prevalece acima de tudo. Mas, tudo tem limite. Considerei um acinte, um desserviço, um descalabro, uma judiação botarem as adolescentes para correr atrás de uma bola sob condições climáticas tão deletérias. Por que eram faveladas? Por que eram mulheres? Ah… Essa ideia só pode ter saído da cabeça de um homem.