O título “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, já nos convida a uma reflexão lúdica e profunda sobre o ato de ler. Assim como o jogo infantil que o nome sugere, a obra oferece múltiplos caminhos e possibilidades de percurso. A metáfora implícita no título se revela na estrutura fragmentada e maleável do romance, onde o leitor é desafiado a saltar entre capítulos, pulando do convencional ao experimental, tal qual uma criança que alterna entre céu e terra, sem perder o ritmo do movimento. Ler “O Jogo da Amarelinha” é participar de uma brincadeira séria, onde o prazer do jogo se mistura à exigência de reflexão crítica e interpretação.
Brincar de amarelinha, como ler o romance, exige um equilíbrio instável entre a regra e o improviso. Cortázar propõe uma narrativa que pode ser lida de maneiras distintas: em sequência tradicional ou seguindo a ordem não linear sugerida pelo autor, com capítulos “saltados” de forma quase aleatória. É um convite ao leitor para que assuma um papel ativo na criação de sentido, desafiando as convenções literárias e exigindo que o jogo de leitura seja tanto uma experiência estética quanto uma vivência intelectual. Assim como o personagem Horacio Oliveira (protagonista cujo nome evidentemente faz uma brincadeira com dois outros Horácios — Horacio Quiroga, contista uruguaio; e Horácio, poeta romano que transita entre o lírico e o satírico) procura sentido na existência, nós, leitores, somos levados a procurar sentido no próprio ato de leitura, que, como a amarelinha, se desenha em diferentes direções e planos.
Mas não nos deixemos enganar pela aparente leveza do jogo. “O Jogo da Amarelinha” é uma obra de vastas ambições filosóficas, tocando em questões de identidade, existência e linguagem. O ato de saltar entre capítulos reflete a própria busca incessante de Horacio por uma verdade inatingível, onde a leitura se converte em uma forma de reflexão sobre a natureza fragmentária do mundo moderno. Cortázar, em sua maestria literária, nos convida a uma experiência que é, ao mesmo tempo, brincadeira e labirinto intelectual, onde cada movimento, cada página, aproxima ou afasta o leitor da compreensão, tornando a leitura um desafio digno das mais intrincadas investigações acadêmicas.
Julio Cortázar, nascido em 1914 na Bélgica e criado na Argentina, é um dos maiores expoentes da literatura latino-americana e um dos principais nomes do chamado boom latino-americano, movimento que trouxe à luz autores de grande relevância internacional, embora sua obra seja uma voz estridente neste coro tão hegemônico estabelecido por algo que se tornou entediante na Literatura do local, uma espécie de estética obrigatória ao modo Gabriel Garcia Márquez. A obra de Cortázar, caracterizada pela fusão do real com o fantástico, além de uma estrutura narrativa inovadora e experimental, desafiou as convenções literárias da época e influenciou gerações posteriores de escritores. Ele foi um mestre da narrativa curta, com contos de precisão técnica e profundidade filosófica, mas sua maior contribuição está em seus romances, como “O Jogo da Amarelinha” (“Rayuela”), que quebrou paradigmas de linearidade e interatividade, conferindo à leitura uma dimensão de jogo intelectual. Através de suas reflexões sobre a existência, o tempo e a linguagem, ele consolidou-se como uma figura central na literatura latino-americana e mundial, com uma obra que continua a provocar e encantar leitores e estudiosos.
“O Jogo da Amarelinha” é de 1963, sem dúvida, a obra-prima de Julio Cortázar, um romance que se ergue como um marco de ruptura estética e formal na literatura do século 20. Concebido como uma estrutura aberta, onde a narrativa se expande em direções imprevisíveis, o livro desafia o leitor a adotar uma postura ativa, participativa, que vai além da mera fruição passiva do texto. O romance oferece ao leitor duas formas de leitura: a primeira, linear, respeita a ordem tradicional dos capítulos; a segunda, não linear, convida a saltos entre capítulos indicados pelo autor, compondo uma espécie de mapa caleidoscópico que transgride a lógica narrativa convencional. Nesse aspecto, Cortázar faz do livro uma metáfora da própria existência, onde a busca por um sentido último é sempre difusa, fragmentada e, muitas vezes, ilusória.
A estrutura inovadora da obra não está dissociada de sua densa carga temática. Cortázar constrói, através de seu protagonista Horacio, uma complexa reflexão sobre o desajuste existencial, o fracasso da comunicação e o anseio por transcender os limites da realidade. Oliveira, um intelectual errante que vive entre Paris e Buenos Aires, busca incessantemente uma compreensão profunda da vida e das relações humanas, sem nunca encontrar uma resposta satisfatória. Essa busca é simbolizada pela própria estrutura labiríntica do romance, onde a leitura e a vida se confundem em uma série de tentativas, equívocos e frustrações. O romance se configura como um autêntico “Bildungsroman pós-moderno”, onde o desenvolvimento espiritual e intelectual do protagonista não se dá por meio de certezas, mas sim pela experiência do fracasso e da fragmentação.
No plano literário, o livro representa uma síntese magistral entre a tradição do romance moderno, com suas influências de James Joyce, Virginia Woolf e Proust, e uma sensibilidade profundamente latino-americana, que se nutre tanto da realidade social do continente quanto de suas dimensões insólitas. O estilo de Cortázar, marcado por uma linguagem fluida, musical e densa, é ao mesmo tempo uma celebração e uma desconstrução da palavra. Ao mesmo tempo que explora as infinitas possibilidades da linguagem, o autor revela suas limitações, tornando “O Jogo da Amarelinha” uma obra que questiona a própria capacidade da literatura de representar a realidade. Desse modo, Cortázar não apenas redefine os limites do romance, mas oferece um comentário profundo sobre a própria condição humana e a incessante busca por um sentido em um mundo caótico e fragmentado.
No enredo, Julio Cortázar constrói uma narrativa que, em suas duas possibilidades de leitura, reflete a fragmentação da existência e a fluidez da realidade. Na história principal, Horacio vive em Paris, dividido entre uma vida boêmia e suas reflexões filosóficas sobre a condição humana. Rodeado por um grupo de amigos excêntricos — o Clube da Serpente —, Oliveira se envolve com La Maga, uma mulher enigmática e misteriosa, cuja simplicidade contrasta com sua própria obsessão intelectual. A relação entre ambos é o centro de tensão do romance, pois enquanto La Maga representa a intuição, o instinto e o sentimento, Oliveira encarna a racionalidade e a busca incessante por significados que lhe escapam. Nessa primeira possibilidade de leitura, mais linear, acompanhamos sua trajetória pessoal, seu desenraizamento e, mais tarde, seu retorno a Buenos Aires, onde tenta reencontrar sentido na vida ao lado de antigos conhecidos.
Porém, o grande jogo proposto por Cortázar reside na leitura alternativa, onde o romance oferece uma segunda sequência de capítulos que reorganiza a narrativa de maneira não linear. Ao seguir essa leitura “ziguezagueada”, o leitor salta para capítulos adicionais — alguns marcados como “prescindíveis” — que acrescentam camadas interpretativas à obra. Esses capítulos extras não apenas expandem o enredo, mas propõem digressões filosóficas, metafísicas e literárias que desafiam o entendimento direto da trama. O jogo aqui se intensifica, com o próprio ato de leitura transformando-se numa metáfora da experiência de Oliveira: uma busca por sentido que nunca se completa. Essa leitura fragmentada revela o caos e a arbitrariedade que permeiam a vida do protagonista, ao mesmo tempo em que dialoga com a estrutura formal do livro, subvertendo as expectativas tradicionais do romance.
No fim, ambas as possibilidades de leitura, embora diferentes em forma, levam o leitor ao mesmo impasse existencial que Oliveira enfrenta: uma vida onde o sentido parece estar sempre fora de alcance, onde cada tentativa de apreensão plena da realidade resulta em mais dúvida, em mais frustração. Se a leitura linear oferece uma narrativa coesa, mas incompleta, a leitura não linear convida à desconstrução, forçando o leitor a participar do jogo e, por conseguinte, a enfrentar, como o protagonista, a impossibilidade de compreender o todo. O livro é mais do que um simples enredo sobre a vida de um homem em crise: é uma metáfora sobre o próprio ato de existir, de pensar e de criar.
A relação entre “O Jogo da Amarelinha” e a pintura de Piet Mondrian, conforme proposta pelo crítico literário Davi Arrigucci Jr., revela dimensões profundas sobre a estética e a estrutura narrativa do romance. Para além da óbvia similaridade entre as formas do pintor e o jogo que as crianças desenham no chão com giz, Mondrian, com suas composições geométricas, feitas de linhas horizontais e verticais rigorosamente organizadas, traduzia uma busca pela harmonia através da abstração. Arrigucci Jr. sugere que, assim como nas telas do pintor holandês, a obra se constrói por uma combinação de simplicidade e complexidade que engendra novas formas de ver e interpretar o mundo. Cortázar, como Mondrian, faz da fragmentação e do caos um ponto de partida para a criação de novas relações entre ordem e desordem, tradição e vanguarda.
Para Arrigucci, a obra de Cortázar não imita o conteúdo das pinturas de Mondrian, mas compartilha com ela uma lógica de composição. Assim como Mondrian rompe com a perspectiva clássica na pintura, buscando uma abstração pura, livre das amarras representacionais, Cortázar desafia a linearidade narrativa tradicional, oferecendo um sistema aberto, em que o leitor pode construir seu próprio caminho. O romance permite que o leitor se desloque, como se estivesse diante de uma tela de Mondrian, entre diferentes blocos e linhas de significado. O uso de capítulos curtos, fragmentados e não sequenciais é comparável ao modo como Mondrian quebra a unidade da forma, criando uma tensão entre o todo e suas partes.
Além disso, tanto Mondrian quanto Cortázar exploram o conceito de ritmo na construção de suas obras. No caso de Mondrian, o ritmo se dá pelo jogo entre linhas, cores e espaços vazios; em Cortázar, esse ritmo é conduzido pelo próprio leitor, que, ao saltar entre os capítulos, estabelece um compasso único na leitura. Arrigucci argumenta que essa semelhança rítmica evidencia a busca de ambos os artistas por uma forma de liberdade que, paradoxalmente, só pode ser atingida dentro de um rigor estrutural. Para Cortázar, como para Mondrian, a liberdade não é anarquia, mas sim uma forma de expressão que nasce da tensão entre as limitações formais e a infinita possibilidade de criação que elas permitem.
O paralelo estabelecido por Arrigucci entre Mondrian e Cortázar também se manifesta na visão de mundo que cada um busca expressar. Mondrian, por meio de sua pintura, pretendia alcançar uma espiritualidade universal, despojada das contingências do mundo material. Em “O Jogo da Amarelinha”, há um eco dessa aspiração quando Oliveira e seus amigos buscam, de forma desesperada e incessante, um sentido mais elevado para a vida, algo que transcenda a banalidade cotidiana. Assim como Mondrian acreditava que a arte poderia captar uma ordem cósmica, invisível, mas essencial, Cortázar utiliza a estrutura fragmentada de seu romance como um meio de sugerir que a verdade e o sentido da vida estão além da percepção imediata, apenas acessíveis por meio do esforço interpretativo contínuo.
A análise do professor da USP, Arrigucci, nos leva a perceber que o diálogo entre “O Jogo da Amarelinha” e a obra de Mondrian não se limita ao plano formal, mas também toca questões filosóficas e estéticas mais amplas. Ambos os artistas estão preocupados com a criação de uma arte que transcenda as convenções de suas respectivas formas — seja a literatura ou a pintura — e que ofereça ao espectador ou ao leitor uma nova maneira de se relacionar com o mundo. Ao unir essas duas figuras, Arrigucci nos permite ver “O Jogo da Amarelinha” como uma obra que, assim como as composições de Mondrian, desafia os limites da forma para alcançar uma dimensão mais profunda, onde a arte e a vida se encontram em uma busca incessante por equilíbrio e significado.
Outra relação irresistível para o leitor da obra de Cortázar se dá com o poema “Um Lance de Dados” (Un Coup de Dés) de Stéphane Mallarmé, e é uma relação especialmente reveladora ao se considerar a natureza lúdica, fragmentada e aberta de ambos os textos. Mallarmé, em sua obra poética, rompe com a linearidade tradicional da poesia, propondo uma experiência de leitura que desestabiliza as normas estabelecidas do verso e da página. Assim como Cortázar, Mallarmé desafia o leitor a participar ativamente na construção do significado, fazendo com que a leitura seja um processo criativo, em vez de uma simples decodificação de mensagens.
Em “Um Lance de Dados”, o jogo é literal e metafórico: o ato de lançar os dados nunca garantirá a certeza do resultado, mas abrirá possibilidades infinitas de combinações. Essa ideia encontra eco em “O Jogo da Amarelinha”, onde Cortázar oferece ao leitor a liberdade de escolher como navegar pela narrativa. O romance apresenta uma “estratégia lúdica”, assim como o poema de Mallarmé, propondo uma leitura que pode ser feita de diferentes maneiras, através de uma sequência pré-determinada (lendo do capítulo 1 ao 56) ou através de saltos entre capítulos (segundo a ordem indicada pelo autor). Essa estrutura móvel evoca a aleatoriedade e a pluralidade de sentidos presentes no poema de Mallarmé, onde a disposição tipográfica na página e o espaço em branco desempenham um papel crucial, permitindo múltiplas interpretações.
Além disso, ambos os textos exploram o conceito de destino e acaso. Mallarmé, ao sugerir que “um lance de dados jamais abolirá o acaso”, apresenta uma visão filosófica em que o caos e a incerteza são inerentes à existência. Cortázar também se apropria dessa concepção ao permitir que o destino do leitor — e, por extensão, o sentido do romance — seja moldado por escolhas que o leitor faz durante o processo de leitura. Assim como no poema de Mallarmé, onde o resultado nunca é definitivo, o jogo da amarelinha de Cortázar se abre para múltiplos fins e interpretações, sugerindo que não há uma resposta única ou definitiva para os enigmas da vida ou da narrativa.
Ambos os textos, ao flertarem com a ideia de jogo e de brincadeira, tanto no sentido lúdico quanto filosófico, questionam a própria natureza da linguagem e da criação literária. Mallarmé e Cortázar parecem sugerir que a arte é, em si, um jogo com o acaso, um lance de dados que nunca alcança uma resolução final. O poema de Mallarmé, com sua estrutura tipográfica dispersa e sua recusa de uma linearidade tradicional, antecipa, em muitos aspectos, a proposta narrativa do argentino. Em ambos, o leitor é convocado a preencher os vazios, a fazer escolhas e a interpretar os múltiplos caminhos que se abrem diante de si.
A relação entre essas duas obras sugere uma ruptura com o conceito tradicional de texto fechado e imutável. Tanto Mallarmé quanto Cortázar abrem suas obras para a interpretação ativa e criativa do leitor, transformando a leitura em um ato de coautoria. O “lance de dados” de Mallarmé e o “jogo da amarelinha” de Cortázar se encontram naquilo que Roland Barthes chamou de “morte do autor” — a ideia de que o sentido de uma obra literária não está fixado pela intenção do autor, mas é continuamente reconstruído pelo leitor, em um jogo incessante de possibilidades e interpretações.
Outro elemento substancial para a compreensão do romance é o entendimento do papel que a música ocupa nele. A representação do jazz se torna um elemento central, tanto temático quanto estilístico, funcionando como uma metáfora da liberdade criativa e da complexidade da experiência humana. O jazz, com sua natureza improvisacional e dinâmica, reflete a estrutura não linear do romance, onde os personagens e suas vivências se entrelaçam de maneira fluida, semelhante às melodias e ritmos que se entrelaçam em uma performance jazzística. Essa música não apenas fornece um pano de fundo cultural para a narrativa, mas também simboliza a busca incessante por autenticidade e a quebra das normas convencionais, tanto na música quanto na literatura.
No contexto do romance, o jazz também serve para destacar a intersecção entre a cultura urbana e a identidade, especialmente nas cidades de Buenos Aires e Paris. Cortázar utiliza o jazz para evocar a sensação de um mundo em constante movimento, onde os personagens se encontram em um estado de tensão entre o desejo de pertencimento e a luta pela individualidade. O ambiente do jazz, muitas vezes associado a uma boemia artística e intelectual, oferece aos protagonistas um espaço de liberdade, permitindo que explorem suas emoções e relações de maneira mais profunda e autêntica. Essa ambientação musical ressalta a efemeridade das experiências humanas e a fugacidade do momento, características intrínsecas à prática do jazz.
Estilisticamente, o jazz influencia a prosa de Cortázar, que incorpora elementos de ritmo e cadência em sua escrita. A maneira como ele articula os diálogos e as descrições é reminiscente das improvisações do jazz, onde a fluidez e a espontaneidade se tornam essenciais. Cortázar também se apropria da descontinuidade e da fragmentação típicas do jazz para criar uma narrativa que reflete a multiplicidade de perspectivas e emoções dos personagens. Essa técnica não apenas enriquece a experiência de leitura, mas também enfatiza a ideia de que, assim como em uma peça de jazz, o sentido não é algo fixo, mas uma construção colaborativa que se revela nas interações entre os personagens e a realidade que os rodeia.
O desfecho de “O Jogo da Amarelinha” gira em torno de uma ambiguidade central: não sabemos ao certo se Horacio Oliveira, em sua busca incessante por respostas, sucumbe ao desespero e ao suicídio. O final do romance, fiel à estrutura fragmentada e aberta que Cortázar constrói ao longo da obra, deixa em suspenso a decisão final do protagonista. Em seu retorno a Buenos Aires, após uma série de fracassos emocionais e intelectuais, Oliveira se depara com o vazio existencial que o acompanhou durante toda a narrativa. A imagem dele à beira da janela, potencialmente prestes a saltar, é simbólica da incerteza e do limiar entre o jogo e o abismo. Cortázar, ao não nos dar uma conclusão definitiva, nos força a confrontar a impossibilidade de uma resposta única, mantendo a obra fiel à sua própria lógica de multiplicidade de leituras e sentidos, onde a resolução é tão fragmentada quanto a vida do protagonista. O possível suicídio de Oliveira não é apenas o desfecho de uma vida de crises, mas também uma representação da dissolução do próprio ato de narrar e de compreender a realidade.
O possível suicídio de Horácio não é uma temática isolada no livro. A busca por identidade é uma questão-chave aqui. Na obra, Paris e Buenos Aires transcendem seu papel de cenários e se erguem como símbolos profundos da jornada existencial e intelectual de Horacio Oliveira. Paris, onde se desenrola a primeira parte do romance, é retratada como uma cidade de encontros e desencontros, um espaço onde o protagonista experimenta sua alienação e busca incessante por significado. Buenos Aires, por sua vez, funciona como um lugar de retorno, carregado de memórias e de uma tentativa de reconexão com o passado e com as raízes. A alternância entre essas duas cidades vai além de uma simples mudança geográfica: é uma metáfora da dualidade que percorre toda a obra — entre a razão e o sentimento, o caos e a ordem, o estrangeiro e o familiar.
Paris, para Oliveira, simboliza o exílio voluntário e a busca por uma nova perspectiva de vida, um espaço que ressoa com a ideia do estrangeiro existencial. Teóricos como Edward Said, em “O Orientalismo”, exploram como o deslocamento geográfico pode se transformar em uma metáfora para o deslocamento interno e cultural. Paris, na visão de Cortázar, não é apenas um centro cultural, mas um símbolo de um espaço cosmopolita e universal, onde o indivíduo se perde em meio a uma multiplicidade de vozes e experiências. Oliveira e seus amigos no Clube da Serpente são, nesse sentido, figuras que buscam significado em um cenário que oferece liberdade intelectual, mas também isolamento. O anonimato que Paris proporciona contribui para a sensação de fragmentação que acompanha o protagonista.
Buenos Aires, por outro lado, simboliza o retorno ao conhecido, mas também à inércia e ao desencanto. Se Paris é o espaço da aventura existencial, Buenos Aires é o lugar da nostalgia e da tentativa de reconciliação com o passado. A cidade aparece como um símbolo de raízes culturais, de pertencimento, e é possível ler essa relação através da lente de autores como Benedict Anderson, em “Comunidades Imaginadas”, que argumenta que as cidades podem funcionar como construções simbólicas de identidade e memória coletiva. Oliveira, ao voltar para Buenos Aires, não apenas tenta se reconectar com um passado perdido, mas também busca entender sua própria identidade em um espaço que, por mais familiar, agora lhe parece distante e desatualizado.
Entretanto, tanto Paris quanto Buenos Aires representam, em última instância, espaços de falha para Oliveira. O conceito de non-lieux (não-lugar), desenvolvido pelo antropólogo Marc Augé em “Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade”, pode ser aplicado aqui. Tanto Paris quanto Buenos Aires se revelam, para Oliveira, como non-lieux, lugares onde ele não consegue estabelecer relações profundas e duradouras. Embora tenha memórias associadas a cada cidade, ele se sente um estrangeiro em ambas, incapaz de encontrar uma verdadeira conexão com o espaço ou com as pessoas ao seu redor. Essa alienação é um dos motores que movem a narrativa, reforçando a noção de que, para Oliveira, o espaço geográfico é sempre insuficiente como lugar de enraizamento existencial.
Ainda podemos ver em Paris e Buenos Aires uma dualidade entre o racionalismo europeu e a pulsação latino-americana. A Paris de Oliveira está impregnada de uma racionalidade fria, onde as relações são mediadas pelo intelecto, pelo distanciamento emocional e pela discussão filosófica. Buenos Aires, por outro lado, embora desprovida da efervescência intelectual da capital francesa, ressoa com as paixões e a memória de um passado que ainda pulsa no protagonista. Essa divisão entre razão e emoção pode ser lida à luz da teoria do “pensamento dual” de Claude Lévi-Strauss, em “O Pensamento Selvagem”, onde o antropólogo explora as tensões entre formas de pensar estruturadas pela lógica e aquelas mais ligadas à experiência sensível e intuitiva. A narrativa de Cortázar se alimenta dessas polaridades, refletindo no protagonista a tensão constante entre essas duas formas de entender o mundo.
É interessante observar, também, como Buenos Aires, por ser o espaço de origem de Oliveira, carrega uma dimensão psicanalítica de retorno ao útero, à casa, ao lugar-mãe. A obra de Gaston Bachelard, “A Poética do Espaço”, oferece uma chave de leitura ao sugerir que a casa é um espaço de refúgio, de intimidade e de memória. No entanto, Buenos Aires não funciona para Oliveira como esse refúgio seguro. Ao contrário, seu retorno é marcado pelo desencanto, pela sensação de que o lar se tornou um lugar estrangeiro. A Buenos Aires que ele reencontra é um espelho distorcido de suas expectativas, simbolizando o fracasso da tentativa de reconciliação com sua própria identidade.
Além disso, é importante notar que a própria fragmentação do romance espelha essa dualidade de espaços e de tempos. Paris e Buenos Aires não são apenas cenários, mas também representações da mente fragmentada de Oliveira, de sua incapacidade de integrar diferentes aspectos de sua vida. Michel Foucault, em “As Palavras e as Coisas”, fala da impossibilidade de um pensamento unificado na era moderna, uma ideia que parece ressoar profundamente em “O Jogo da Amarelinha”. Oliveira é um personagem dividido, como suas cidades, e sua incapacidade de harmonizar Paris e Buenos Aires reflete sua falha maior: a de conciliar suas diferentes facetas — intelectual e emocional, racional e instintiva.
Paris e Buenos Aires, no contexto da obra, são símbolos ricos e multifacetados, representando não apenas dois espaços geográficos, mas também duas formas de vida, duas maneiras de habitar o mundo e de conceber a existência. Paris, com sua racionalidade e distanciamento, e Buenos Aires, com sua intensidade emocional e raízes profundas, são dois polos entre os quais Horacio Oliveira oscila, sem nunca encontrar uma síntese satisfatória. Essas cidades, lidas à luz de teorias da representação de espaço e identidade, se configuram como expressões de um dilema universal: o fracasso da busca por sentido em um mundo que, como o próprio romance de Cortázar, se revela sempre mais complexo, fragmentado e indeterminado do que imaginávamos.
Este mesmo autor, que ora vos escreve, compreende profundamente as dificuldades inerentes à relação entre lugares e identidade. Nascido em Goiânia, uma cidade distante dos grandes eixos culturais do país, por dez anos esteve fora, dividindo sua residência entre São Paulo e o Rio de Janeiro, majoritariamente na capital paulista, dois dos maiores polos intelectuais e artísticos do Brasil. Em São Paulo, encontrou uma atmosfera que, repleta de oportunidades e debates, salientou a grande solidão intelectual que experimenta e sempre experimentou em Goiânia. A metrópole, com sua vastidão e diversidade, ampliou o horizonte de experiências, mas também reforçou a sensação de deslocamento, embora tenha se sentido em Sampa não em uma casa, mas pela primeira vez, em um lar, algo que Cortázar certamente reconheceria em sua própria transição entre Paris e Buenos Aires. No entanto, foi em Goiânia, em um retorno ao lugar de origem, que encontrou o refúgio necessário para organizar, com segurança e clareza, as elaborações de suas vivências, leituras, tantos cursos, debates e meditações acumuladas na grande cidade. Assim, o diálogo entre esses espaços espelha, em microcosmo, o que “O Jogo da Amarelinha” propõe: que a identidade e a compreensão de si são constantemente mediadas por espaços que, ao mesmo tempo que nos definem, nos alienam.
Esta obra-prima de Cortázar representa um marco singular na literatura latino-americana, um ponto fora da curva em uma tradição que, à época, se consolidava em torno do realismo mágico. Enquanto autores como Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier e Juan Rulfo exploravam, com maestria, as fronteiras entre o fantástico e o cotidiano, criando universos onde o extraordinário se inscrevia de maneira natural no tecido social e histórico da América Latina, Julio Cortázar desvia dessa rota. Ele propõe algo radicalmente diferente: um romance que desafia as convenções narrativas e rompe com as expectativas de linearidade, forma e conteúdo, ao mesmo tempo em que se distancia do fervor criativo que rodeava o realismo mágico.
O realismo mágico, que emergiu como uma novidade, oferecia um espelho ao mesmo tempo familiar e desestabilizador da realidade latino-americana. Ao trazer para a superfície as tensões entre modernidade e tradição, rural e urbano, mito e história, os escritores dessa corrente criaram uma linguagem literária poderosa e única, capaz de dialogar com as especificidades da história colonial e pós-colonial do continente. No entanto, essa inovação, como frequentemente ocorre nas artes, logo se converteu em uma tendência, em um estilo que passou a ser imitado e replicado, muitas vezes de maneira superficial. O que inicialmente foi uma ruptura com as formas realistas de representação social, logo se transformou em uma moda literária, com fórmulas previsíveis e com uma ênfase exagerada no maravilhoso como meio de diferenciar a literatura latino-americana da tradição europeia.
Cortázar, no entanto, subverte essas expectativas ao oferecer uma obra que, em vez de se preocupar com o hibridismo entre o mágico e o real, volta-se para uma experimentação formal radical. Seu opus magnum rejeita o modelo convencional de narrativa e oferece ao leitor uma liberdade inédita: a de escolher o próprio caminho de leitura. A estrutura do romance, que pode ser lida de forma linear ou saltando entre os capítulos, é uma metáfora da própria busca por sentido que permeia a obra. Não há uma realidade fixa e estável no universo de Cortázar, mas uma multiplicidade de possibilidades, uma fragmentação que espelha a crise existencial de seu protagonista e, por extensão, do próprio leitor.
Essa inovação formal faz do romance uma obra que escapa das categorias fáceis nas quais o realismo mágico já começava a ser aprisionado. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, que ainda se concentravam em usar o realismo mágico para abordar questões sociais, políticas e culturais da América Latina, Cortázar apresenta um universo que é, em grande medida, introspectivo, filosófico e existencial. Ele não busca retratar o mundo exterior com suas maravilhas e catástrofes, mas mergulha no interior da mente de seu protagonista e dos leitores, provocando-os a questionar a própria natureza da realidade, da linguagem e da narrativa.
A crítica literária especializada rapidamente notou essa diferença fundamental entre Cortázar e seus contemporâneos. Como observa Jean Franco, em “A Cultura Moderna da América Latina”, “O Jogo da Amarelinha” oferece uma forma de engajamento literário que não depende da reprodução de mitos nacionais ou da idealização de uma cultura latino-americana essencializada, mas sim de uma busca incessante por novas formas de expressão, que se distanciam tanto do exotismo quanto da autocelebração. Em vez de um mergulho nas raízes mágicas da cultura, Cortázar opta por uma reflexão sobre o próprio ato de narrar, tornando seu romance não apenas uma inovação estética, mas também uma crítica implícita à tendência crescente de reificação do realismo mágico como “o” estilo da literatura latino-americana.
Além disso, Cortázar propõe uma ruptura com a própria noção de identidade latino-americana, que, no auge do boom literário dos anos 1960, era muitas vezes delimitada pelas convenções do realismo mágico. Sua obra sugere que a identidade, tanto literária quanto pessoal, é muito mais fluida e escorregadia do que aquilo que os padrões dominantes da época permitiam. Em “O Jogo da Amarelinha” não há uma América Latina essencializada, um espaço mágico e mítico que se inscreve de forma inequívoca no imaginário cultural. Pelo contrário, há um sujeito em constante movimento, que se desloca entre Paris e Buenos Aires, entre o exílio e o retorno, entre a certeza e o caos.
Essa pluralidade de caminhos e significados aproxima Cortázar de tradições literárias de vanguarda mais alinhadas com a Europa do que com o continente latino-americano, uma escolha que gerou controvérsia e ao mesmo tempo sublinhou sua originalidade. O fato de ele rejeitar o realismo mágico como paradigma dominante em sua época não é apenas uma decisão estética, mas também política. Em vez de se conformar às expectativas globais de uma “literatura latino-americana” marcada pelo exótico, ele propõe uma literatura que dialoga com o experimentalismo de escritores como James Joyce, Virginia Woolf e os surrealistas franceses, afastando-se, assim, das tendências mais visíveis do boom literário.
Enquanto o realismo mágico oferecia, por vezes, uma reconciliação entre o mundo visível e o invisível, entre a tradição e a modernidade, Cortázar nos oferece o caos, o jogo, a incerteza. Sua obra é uma aposta no futuro da literatura, uma recusa em aceitar as fórmulas prontas que rapidamente transformaram o realismo mágico de inovação literária em um produto cultural vendável. Nesse sentido, o livro não apenas subverte as expectativas do leitor, mas também questiona o próprio lugar da literatura latino-americana no cenário global, oferecendo uma alternativa radical ao realismo mágico que, se por um lado consolidou o reconhecimento internacional da literatura da região, por outro correu o risco de cristalizar e simplificar sua complexidade.
Cortázar, com sua ousadia formal e filosófica, expande as possibilidades da literatura latino-americana, inserindo-a em um campo de jogo muito mais amplo, onde a liberdade de interpretação e a ruptura com as convenções são não apenas permitidas, mas essenciais. Enquanto muitos de seus contemporâneos se voltaram para o passado mítico da América Latina, Cortázar optou por olhar para o futuro da forma literária, tornando-se, assim, um dos maiores inovadores da literatura do século 20. Seu livro é muito mais do que um romance experimental ou um desvio da tradição do realismo mágico: ele é um convite aberto para a reinvenção do ato de ler, uma desconstrução da literatura e da própria condição humana. Cortázar, com sua prosa audaciosa e fragmentada, nos oferece um espelho quebrado da realidade à la Picasso, onde cada fragmento reflete um ângulo distinto da experiência, sugerindo que o sentido está em constante construção — e sempre à beira do abismo. Paris e Buenos Aires não são apenas cenários de uma história, mas metáforas profundas do exílio, do pertencimento e da busca eterna por um centro de gravidade em um mundo instável. O que “O Jogo da Amarelinha” nos ensina é que a literatura, como a vida, não tem uma rota única. Não há um caminho certo ou errado, mas apenas a tentativa — sempre imperfeita, mas infinitamente rica — de saltar de quadrado em quadrado, em busca de algo maior, que talvez nunca cheguemos a alcançar. Contudo, é nesse movimento, nessa tensão entre o jogo e a busca, que reside a verdadeira beleza da obra e da própria existência.