Filme aplaudido por 11 minutos em Veneza e vencedor do Oscar 2023 está no Prime Video por menos que uma Coca-Cola Divulgação / A24

Filme aplaudido por 11 minutos em Veneza e vencedor do Oscar 2023 está no Prime Video por menos que uma Coca-Cola

Um homem se ajeita com alguma dificuldade na espaçosa poltrona da sala de cinema pouco antes do início da sessão de um filme que será para ele particularmente desconfortável. A metalinguagem involuntária em “A Baleia” foi para mim como o eletrochoque nos lunáticos do princípio do século 20, e o degas aqui, com metade dos cerca de trezentos quilos do personagem central — depois de ter passado fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, exatamente como canta Raul Seixas (1945-1989) em “Ouro de Tolo” (1973) —, captei a mensagem e decidi que era hora de fazer alguma coisa. Darren Aronofsky, esse mago diabólico, continua a tirar de seus atores e de seu público o desencanto e a melancolia, apenas para refiná-los a um ponto tal que é impossível dizer que aquilo não seja uma obra de arte. “A Baleia” é um filme repulsivo, asqueroso até, mas é um óbvio recorte da vida, plena de som e fúria, mas também de repulsa e asco muitas vezes, para magricelas, sarados, musculosos, gordos e muito gordos. Quiçá Aronofsky seja o cineasta que remexa com mais delicadeza as vulnerabilidades e as imundícies do espírito humano (e de caso pensado), de acordo com o que se assiste em “Réquiem para um Sonho” (2000), “O Lutador” (2008), “Cisne Negro” (2010) ou “Mãe!” (2017). Em “A Baleia”, o diretor dá um duplo twist carpado e oferece um espetáculo sórdido, sempre com a melhor das intenções.

Charlie, um professor de literatura e redação de Idaho, está perigosamente cômodo em seus 272 quilos. Sua voz materializa-se num quadrado preto pela câmera que usa dar suas aulas online, e quando este seu único prazer chega ao fim, ele se pune com baldes de frango frito e sanduíches de almôndega que alimentariam a rua toda e que engole com pressa, quase morrendo sufocado, enquanto pesquisa sobre comorbidades próprias de gente na sua condição. O cuidado de Aronofsky com o texto de Samuel D. Hunter, autor da peça homônima lançada em 2014, garante na releitura cinematográfica a imersão do espectador naquele mundinho tão hermético, muito mais claustrofóbico com a ajuda da fotografia de Matthew Libatique, que deixa o apartamento de Charlie sombrio como um tugúrio ou uma cova. Essa sensação de aprisionamento chega no público, e o diretor vale-se dela para mencionar a homossexualidade silenciosa do protagonista, absorto num instante de onanismo alimentado com pornografia gay, com tanto entusiasmo que quase sofre um ataque cardíaco. Quando parece que não há mais saída e o filme vai resvalar no grotesco, Charlie passa a dividir a cena com duas personagens que transformam o enredo.

Liz, uma enfermeira que o conhece de outros Carnavais, faz as vezes de confidente e, claro, socorrista eventual, chegando a tempo de impedir uma tragédia, motivada pela compulsão de Charlie. Aos poucos, se deduz que ela o ama e que os dois até poderiam consumar essa paixão, não tivesse ele outros apetites. Juntos, Hong Chau e Brendan Fraser levam “A Baleia” para outras águas, e quando para se tranquilizar ele se saca de um ensaio de um aluno sobre “Moby Dick” (1851), o clássico de Herman Melville (1819-1891), o longa torna-se ainda mais matador em seu intimismo. Os corações mais empedernidos derramam uma furtiva lágrima diante daquele homem num andador, locomovendo-se com dificuldade entre a mobília estrategicamente posicionada, esperando uma visita de Ellie, a filha interpretada pela ótima Sadie Sink. 

Como o politicamente correto sempre consegue enxovalhar tudo, a escalação de Fraser foi um imenso obstáculo a ser vencido para que “A Baleia” fosse tão longe. Fraser teve de abusar dos enchimentos e próteses para tornar minimamente crível a estética de Charlie, o que o Oscar de Melhor Maquiagem e Penteados para Judy Chin, Adrien Morot e Annemarie Bradley prova que conseguiu. A propósito, sua estatueta de Melhor Ator deve ser creditada, além de ao seu talento, a Aronofsky e, o principal, às duas excelentes atrizes que contracenam com ele. Quanto a mim, de baleia voltei a boto, como me chamavam em menino. 


Filme: A Baleia
Direção: Darren Aronofsky
Ano: 2022
Gênero: Drama 
Nota: 10