As imagens do cão e do pássaro no Grande Sertão: Veredas Foto / Acervo Fundo JGR

As imagens do cão e do pássaro no Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa tinha o costume de anotar tudo o que via, ouvia e percebia em suas conhecidas viagens pelo interior de Minas Gerais. O diplomata de carreira que morava longe do Brasil tirava o terno e grava para vestir as roupas de um vaqueiro. A cada item novo que surgiu pelo caminho, ele escreveu os detalhes em pequenas cadernetas ou cadernos de campo, à moda dos botânicos e antropólogos. Animais, plantas, rochas, jeitos de falar, nada escapou de seu olhar e suas anotações que serviram de base para os seus contos, novelas e romances.

O livro “Ser-tão Natureza: a Natureza em Guimarães Rosa” (2008), de Mônica Meyer, traz uma investigação dessas famosas anotações do escritor. Vale a pena conferir esse lado tão curioso do escritor mineiro. Elementos naturais compõem, por exemplo, a narrativa de “Grande Sertão: Veredas” (1956), não sendo acessórios na história do velho jagunço Riobaldo que relata suas andanças, causos e amores (sobretudo por Diadorim). Um bicho ou uma planta se casa à memória desse narrador que, pela escrita, mistura a fala sertaneja à mais alta cultura de várias partes do mundo.

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (Companhia das Letras, 560 páginas)

Dessa natureza do sertão, se destacam duas figuras recorrentes no romance mais conhecido de Guimarães Rosa: o cão e o pássaro. Ambos dão profundidade aos personagens e às histórias. O cão, o cachorro, fazem parte do universo de Riobaldo e dos jagunços. É a representação do animal que está no chão, ligado à terra, e que consta também do imaginário do diabo. Os passarinhos são seres do ar, estão num lugar, depois vão para outro, são e não são ao mesmo tempo. Eles se conectam a Diadorim, a mulher que é e não é, assumindo o papel da donzela guerreira.

As menções aos cães e pássaros abundam no romance “Grande Sertão: Veredas”. Mais ao final do livro, Riobaldo cria uma palavra (“cachorrando”) para explicar sua forma de vida e de seus companheiros naquele universo geográfico, cultural e social. São homens errantes, pobres, analfabetos. Diz ele: “Um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu podia ter sido capaz de pelejar certo, de ser e de fazer; e no real eu não conseguia”. Aqueles sujeitos podem ser vistos como animais de caça, vagando atrás de suas presas, em lutas intermináveis. Por que guerreiam tanto? Ninguém sabe.

Cachorros mestres

A inteligência de Riobaldo carrega um instinto do animal, para além da racionalidade de um ser humano: “O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”. O jagunço assim perambula pelo sertão, desenvolvendo habilidades que só um cão pode ter para alcançar suas presas — no caso aquelas lutas sem fim de bandos e chefes num ambiente pré-moderno, ainda encantado por mitos e histórias. Existe um mundo paralelo a este, que só a escrita pode ou não alcançar.

A sobrevivência é alcançada pelos cães que são mestres, sábios. “Aqueles deviam de estar de faca em fúria na mão, cobrejando; somente por meio de cachorros-mestres, afirmados em caça de gente, era que podiam ser pegos, o que não se tinha”, conta Riobaldo. Trata-se do sertão, ou melhor, de um país que se configura pela violência (o poder) e pela riqueza (a propriedade rural). Lugar onde se caça gente, uns contra os outros, sobrevivendo apenas quem domina as armas, os saberes da natureza e as coisas invisíveis — expressa em figuras como o diabo.

Nem o companheiro inseparável de jornada (Reinaldo/Diadorim) escapa da comparação com o espírito animal do cachorro: “Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada mudava”. No “Grande Sertão: Veredas”, os cães e os humanos se misturam na vida e podem até mostrar sentimentos comuns: “‘Um cachorro, quando se enforca, chora lágrimas — os olhos dele regulam com os de gente…’ — foi o que o Alaripe disse, com simples voz”. Diadorim estão “cachorrando” também pelo sertão, para vingar a morte do pai.

A forma do jagunço-cão se desdobra no diabólico. Os seres se fundem nesse cenário de muitas misturas, uma coisa dentro da outra. “Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo”, diz Riobaldo. Num dos trechos mais conhecidos, o narrador faz uma lista de nomes do diabo: “O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos”.

O pacto nas veredas mortas coloca o diabo no meio de Riobaldo, criando o jagunço-cão-demônio. É essa figura que sai “cachorrando” pelo sertão, à deriva, sendo o avesso do homem. Existe e não existe. Ou como diz o personagem Zé Bebelo, ali é o “mundo à revelia”, com outra ordem e outra lei da modernidade. Resta ao velho narrador carregar o luto e a melancolia na fala. Antes de contar o segredo do amigo Reinaldo/Diadorim, ele pode lamentar infinitamente a perda da única pessoa que importava no mundo, o seu “amor de ouro”. O cadáver do amigo revela a desgraça completa.  

Passarim

O complemento à figura do cão é o pássaro. É o canto de um deles que vai despertar a memória e fazer Riobaldo introduzir o nome do amigo na trama do “Grande Sertão: Veredas”. Diz ele: “Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-de-barro cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim”. De forma involuntária, aparece a lembrança do personagem que ensina tudo ao narrador, mostra o outro lado da vida, e o afasta da forma da mera vida “cachorrando” no sertão. É possível ver as coisas e as pessoas de outra maneira.

“Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim… A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua — se diz — e canguçu monstra pisa em volta”, conta ao lembrar da alta sabedoria do amigo. A dupla conversa sem parar, não se afastam nas andanças pelo sertão. É Reinaldo/Diadorim, por exemplo, que apresenta a ele o pássaro mágico do romance: o manuelzinho-da-croa. “Conforme o Reinaldo disse-o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-croa”, diz Riobaldo.

O nome “manuelzinho-da-croa” é uma invenção de Guimarães Rosa, sendo chamado de “batuíra-de-coleira” na cultura sertaneja. Um ser único que muda a forma do narrador de olhar para o mundo. “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea — às vezes davam beijos de biquinquim — a galinholagem deles. — É preciso olhar para esses com um todo carinho… — o Reinaldo disse.”

Riobaldo e Diadorim eram um casal de manuelzinho-da-croa e funcionam no romance pela combinação entre a brutalidade do cão e a delicadeza da pequena ave. Dois universos que se complementam e se entendem na conversa — o sonho da arte modernista era o diálogo dos artistas com o povo. O pássaro sobrevive nas reminiscências do narrador: “De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o Manuelzinho-da-croa”. O amigo também jagunço é aquele passarinho inquietante: “O existir de Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-croa”.

O narrador se rende ao interlocutor que escuta sua fala incessante e confessa o que nunca poderia dizer nos tempos de jagunço “cachorrando”: “E o mimoso pássaro que ensina carinhos — o manuelzinho-da-croa… Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de amor. Amor em perto, às vezes sossega, em muitos adiamentos — ao homem da branca barba”. O passarim existe na imaginação de Riobaldo, e só na velhice ele pode tirar o seu maior segredo da cripta da memória. A vida inteira, a verdade do amigo do Reinaldo teve de ficar bem guardada.