Inspirado em Dostoiévski e nas correntes do existencialismo e absurdismo, suspense arrebatador estreia na Netflix Divulgação / XYZ Films

Inspirado em Dostoiévski e nas correntes do existencialismo e absurdismo, suspense arrebatador estreia na Netflix

Na novela “O Duplo” (1846), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o conselheiro Goliádkin é obrigado a enfrentar uma questão esdrúxula. Um seu sósia aparece sem explicação pelas ruas de São Petersburgo, e então, começa para esse homem pacato uma descida ao inferno. O argumento dos doppelgängers, figuras que reproduzem à perfeição a aparência física de alguém sem apresentar nenhum vínculo biológico, escancara a natureza quase insondável de “Dual”. 

Na sua versão muito particular de Dostoiévski, Riley Stearns abusa de tons frios na intenção de assustar, mas não só. Os conflitos existenciais de uma alma vulnerável emergem sem licença, contando com a parceria do espectador para que o filme chegue aonde almeja. O diretor-roteirista entra com delicadeza em tópicos a exemplo da tecnologia servindo de elo entre a vida e a morte, até que começa a esquadrinhar também em que medida isso é ou não desejável. E já se pode saber para onde ele vai.

O pavor do homem frente à decrepitude e ao fim da vida é presente na história da humanidade desde o princípio dos tempos. Talvez para nos inspirar a todos, fiéis ou não, o “Gênesis”, no Antigo Testamento bíblico, conta a história de Matusalém, patriarca da humanidade e avô do célebre Noé, que teria vivido 969 anos. Como seria possível a Matusalém alcançar tal proeza, visto que não se dispunha nem de indícios da medicina como a conhecemos hoje — moderna, arrojada, fundamentada em pesquisas que levam anos para serem concluídas — e muito menos da tecnologia de ponta que cerca (e sufoca) sociedades ao redor do mundo em campos os mais diversos, da medicina propriamente dita à biologia, passando pela engenharia e mergulhando na indústria automobilística e de cosméticos, por exemplo, é um mistério da fé. A verdade é que o homem pós-moderno, como o vetusto personagem do “Gênesis”, sempre reivindicou sua cota de eternidade. E não é preciso ir longe para testificá-lo, dado o caráter simples de instrumentos que auxiliam-no quanto a burlar a imposição do envelhecimento e, destarte, do término da vida — em proporção maior ou menor —, como cadeiras de rodas, próteses ósseas, óculos de grau, tintas de cabelo.

A misteriosa doença terminal de Sarah é só mais uma das tantas aflições da protagonista interpretada por Karen Gillan. O namorado Peter, vivido por Beulah Koale, e a mãe rígida, de Maija Paunio, parecem estar ao seu lado incondicionalmente; assim mesmo, ela não conta-lhes nada do que está passando, o gancho para tudo quanto vem a acontecer até o encerramento. Ela decide criar sua substituta, decerto movida pela urgência de agradar a todos, e aí que este filme meio hermético começa a fazer sentido. A performance de Gillan ressalta o desconforto de alguém exilado em sua própria existência, e no ar fica a pergunta: morrer é tão cruel quanto nos fazem crer certos manuais da felicidade fácil? A questão é meramente retórica, por óbvio.


Filme: Dual
Direção: Riley Stearns
Ano: 2022
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 8/10