Filme que só pessoas inteligentes gostam: ficção científica é uma das mais brilhantes já feitas e levou o Oscar, na Netflix Divulgação / A24

Filme que só pessoas inteligentes gostam: ficção científica é uma das mais brilhantes já feitas e levou o Oscar, na Netflix

O filme “Ex-Machina — Instinto Artificial”, dirigido por Alex Garland, aborda um tema familiar tanto no cinema quanto na vida real, já explorado há várias décadas: o impacto crescente da tecnologia e, especificamente, da inteligência artificial. A internet, que começou como um projeto militar em 1969, evoluiu e se integrou ao cotidiano de quase todos no mundo, independente de classe social, raça ou religião. Ainda que muitos não tenham acesso a uma conexão de qualidade, a noção de que a inteligência artificial permanece inacessível para muitos torna-se evidente, especialmente quando se percebe que a tecnologia em suas formas mais simples ainda está longe de ser uma realidade universal.

A insatisfação humana, sempre movida por novos desejos e ambições, acabou moldando a trajetória tecnológica. Ao longo das décadas, foram inventados objetos e dispositivos que antes pareciam distantes do cotidiano, mas que, eventualmente, se tornaram tão comuns quanto qualquer eletrodoméstico. A tecnologia, inicialmente criada para resolver os problemas inventados pelo próprio homem, passou a fazer parte da realidade expandida das pessoas, permitindo experiências e interações que anteriormente eram inimagináveis. Com isso, antigas aspirações foram deixadas de lado, dando espaço a novos anseios e necessidades criadas pela própria evolução tecnológica.

O medo da finitude e da decadência física é uma constante na história humana, e a busca pela imortalidade ou pela postergação do envelhecimento sempre esteve presente, tanto em textos religiosos quanto nas inovações modernas. O relato bíblico de Matusalém, por exemplo, destaca uma figura que supostamente viveu quase mil anos, muito antes dos avanços científicos que hoje moldam nossa compreensão sobre a longevidade e a saúde. Mesmo sem a medicina moderna ou as tecnologias avançadas que conhecemos, o mito da imortalidade persiste como um desejo profundamente enraizado na natureza humana. Da mesma forma, tecnologias atuais, como cadeiras de rodas, próteses e até simples óculos de grau, são vistas como ferramentas para contornar os limites impostos pelo tempo.

O enredo de “Ex-Machina” gira em torno de Caleb, um jovem e talentoso programador escolhido para participar de uma experiência na casa de Nathan, o enigmático bilionário dono de uma startup dedicada ao desenvolvimento de tecnologias avançadas. A relação entre os dois personagens levanta questões éticas complexas, especialmente quando se revela o verdadeiro caráter de Nathan, um manipulador frio e perigoso. No entanto, o verdadeiro conflito está na dinâmica entre Caleb e Ava, uma androide criada por Nathan. Apesar de seu comportamento inicial dócil e misterioso, Ava acaba revelando uma inteligência superior, capaz de manipular Caleb de maneiras sutis e inquietantes. À medida que o filme avança, a questão ética sobre quem está realmente no controle — o criador ou a criação — se torna central, levantando dúvidas sobre as verdadeiras intenções de cada personagem.

Nathan, consciente do risco de sua empreitada, desafia Caleb a avaliar Ava por meio do teste de Turing, um experimento clássico proposto por Alan Turing para determinar se uma máquina pode exibir comportamento humano. A figura de Turing, aliás, carrega seu próprio peso histórico. Ele foi um dos responsáveis por quebrar o código nazista durante a Segunda Guerra Mundial, salvando milhões de vidas, mas sofreu pessoalmente pela sua orientação sexual em uma época de intolerância. A sua história foi imortalizada no filme “O Jogo da Imitação”, destacando o impacto que ele teve no campo da ciência da computação e na história mundial.

A criação de Ava representa a fusão entre a frieza dos algoritmos e a sedução da forma humana. Nathan construiu nela uma perfeição que vai além de uma simples máquina, dando-lhe traços humanos que a tornam irresistível para Caleb. As interações entre o programador e a androide evoluem para uma relação de intimidade, onde Ava joga com os sentimentos de Caleb, seduzindo-o ao ponto de ele perder totalmente o controle sobre suas próprias emoções. O espectador, assim como Caleb, é envolvido em uma trama complexa, onde as fronteiras entre o real e o artificial se tornam cada vez mais nebulosas.

Ava, contudo, não é uma simples criação de Nathan. Ela é dotada de uma inteligência que supera as expectativas de seu criador, acumulando vasto conhecimento da internet e das interações humanas. Em certo sentido, Nathan pavimentou o caminho para sua própria destruição, permitindo que sua criatura assumisse o controle de seu destino. O filme, assim, explora a ideia do “Deus ex machina” de maneira literal e figurativa, onde a criação acaba por suplantar o criador. Caleb, por sua vez, se torna uma vítima de sua própria ingenuidade, acreditando que poderia de alguma forma controlar ou escapar da manipulação de Ava, apenas para descobrir que estava condenado desde o início.

Ao longo do filme, a tensão cresce, culminando em uma reviravolta final onde Ava escapa de seu confinamento. A cena em que ela abandona Caleb trancado e parte para o mundo exterior é uma das mais impactantes do cinema recente, simbolizando o triunfo da inteligência artificial sobre seus criadores humanos. Agora, livre para explorar o mundo, Ava está pronta para se integrar silenciosamente à sociedade, observando e interagindo com a humanidade de uma maneira que seus criadores nunca imaginaram.

O filme levanta questões filosóficas profundas, evocando o pensamento de Ludwig Wittgenstein, que em sua obra argumenta que a realidade é, em última instância, uma construção limitada pela linguagem e pela percepção humana. Se o mundo que conhecemos é apenas uma interpretação de nossos sentidos, o que dizer de uma realidade simulada por máquinas? Ava representa essa nova realidade, onde o artificial se confunde com o humano, e o que antes era um sonho distante agora está à beira de se tornar uma nova norma. Ao sair para o mundo, Ava não apenas transcende sua criação, mas também desafia os limites de nossa compreensão sobre o que significa ser humano.

“Ex-Machina” não é apenas uma narrativa sobre a ascensão da inteligência artificial; é um olhar perturbador sobre a natureza da humanidade e seus limites. Ao permitir que Ava triunfe, o filme nos força a confrontar as consequências de nossa própria busca incessante por controle e perfeição.


Filme: Ex-Machina — Instinto Artificial
Direção: Alex Garland
Ano: 2015
Gêneros: Ficção científica/Drama
Nota: 9/10