Drama de Kenneth Branagh, com Jamie Dornan, que levou 255 indicações a prêmios e faturou o Oscar, na Netflix Divulgação / Focus Features

Drama de Kenneth Branagh, com Jamie Dornan, que levou 255 indicações a prêmios e faturou o Oscar, na Netflix

Falar sobre aquilo que se conhece profundamente — e, acima de tudo, que se ama — é a maneira mais certeira de alcançar o universal. Essa ideia, inspirada no poema “O rio da minha aldeia”, de Fernando Pessoa (1888-1935), escrito em 1946, uma década após sua morte, traduz com perfeição o espírito de “Belfast”. O filme, dirigido por Kenneth Branagh, é um retrato tocantemente íntimo da infância do cineasta na Irlanda do Norte durante os turbulentos anos 1960, quando o país começava a sentir os primeiros sinais de uma crise que se estenderia por três décadas.

Branagh, um dos grandes atores e diretores de sua geração, capta de maneira autêntica o olhar curioso e inquieto de um menino de nove anos em meio às tensões religiosas entre protestantes e católicos na capital que dá nome ao filme. “Belfast” não é apenas uma reconstrução histórica; é uma revisitação pessoal, carregada de memórias que, como as de todos nós, são imperfeitas. O uso do preto e branco pela fotografia de Haris Zambarloukos ressalta essa natureza onírica, intercalada com flashes de cores vibrantes que representam momentos de lembrança mais vívida, como se fossem retiradas diretamente das profundezas de nosso subconsciente, onde memórias antigas permanecem guardadas.

O filme é dedicado “aos que ficaram, aos que partiram e àqueles que se perderam”, uma mensagem clara no epílogo que reflete o coração de Branagh. Ele relembra o verão de 1969, durante os Troubles, o violento conflito religioso-político que devastou a Irlanda do Norte. Entre episódios de “Star Trek” (1966-1969), a narrativa nos faz perceber, assim como Buddy, o personagem principal e alter ego de Branagh, que o caos está se instalando. Janelas são quebradas, portas arrombadas, e multidões começam a tomar as ruas de um bairro operário em Belfast, onde Buddy e sua família tentam seguir com suas vidas.

O diretor, com uma sutileza impressionante, constrói uma galeria de personagens encantadores, quase como parentes que não vemos há muito tempo. Além de Buddy, vivido com uma ternura mágica por Jude Hill, o núcleo familiar é composto por Ma e Pa, interpretados respectivamente por Caitríona Balfe e Jamie Dornan. Ambos brilham em papéis que exploram a realidade de muitos norte-irlandeses, obrigados a deixar seu lar em busca de melhores oportunidades. A evolução de Dornan como ator, saindo da sombra de seu papel estereotipado em “Cinquenta Tons de Cinza” (2015-2018), é particularmente impressionante. Em “Belfast”, ele entrega uma performance madura e comovente, semelhante à sua atuação em “O Cerco de Jadotville” (2016), mostrando o quanto evoluiu como intérprete.

O elenco de “Belfast” ainda conta com lendas como Judi Dench e Ciarán Hinds, que interpretam os avós de Buddy. A presença desses atores experientes enriquece ainda mais a produção, trazendo uma profundidade emocional que eleva a narrativa. Dench, que já colaborou com Branagh em *A Pura Verdade* (2018), entrega uma atuação sublime, enquanto Hinds acrescenta uma dimensão terna e afetuosa ao filme.

Branagh, que nasceu protestante, não hesita em reconhecer os horrores do conflito religioso, transmitindo uma mensagem clara contra a ignorância e a intolerância. “Belfast” é mais do que uma celebração da humanidade; é uma condenação às divisões que levam ao ódio e à violência. O filme, com sua fluidez narrativa e forte impacto emocional, é um convite a revisitar nossas próprias memórias e questionar como a história molda não só nossos destinos, mas também nossa identidade e nossa visão de mundo.


Filme: Belfast 
Direção: Kenneth Branagh 
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Coming-of-age 
Nota: 9/10