Onde fica a saída

Onde fica a saída

Estou precisando de uma mãozinha do pessoal que lida com a saúde mental das pessoas. Diagnóstico. Eu preciso de um diagnóstico. Luz. Eu preciso de uma luz. Eu sei que poderá soar aberrante, patético e antiético que eu relate nessas linhas a história de uma pessoa de quem gosto muito e que, certamente, está acometida por algum distúrbio psíquico. Ocorre que essa mulher em questão não admite o problema e, pior do que tudo, fica irada, manda às favas quem lhe recomende uma avaliação clínica da parte de um profissional da psicologia ou da psiquiatria.  

Eu sei que, de perto, ninguém é normal, mas, o caso dessa moça é instigante. Acontece que, nem que a vaca tussa, a dita-cuja vai buscar um recurso. Não há como conduzi-la à força. Trata-se de uma amiga. Uma amiga de longa data, dos tempos de escola, uma criatura tão achegada que bem poderia chamá-la de irmã. Uma quase-irmã que decretou a minha morte ainda em vida. Eu não me sinto morto. Nem ofendido. Estou vívido. Vívido e ávido no interesse genuíno de ajudá-la, pois, sei que ela está perdida. Parece óbvio que ela esteja se sabotando, entrando numa espiral de sofrimento e de isolamento social.

A pessoa em questão é uma mulher solteira, sem filhos, adentrada na quinta década de vida. Formada em Engenharia Civil, trabalha como professora numa renomada instituição de ensino superior. Dedicou-se inteiramente à carreira acadêmica como pesquisadora e como docente. Fez pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Uma mente brilhante grassando nas sombras. Morou durante cinco anos na América do Norte para se aperfeiçoar. Voltou esquisitona de lá. Percebi a mudança quando a reencontrei no saguão do aeroporto. “Deve ser por causa do jet lag”, pensei.

Ela é a filha caçula de uma família de classe média alta. Tem quatro irmãos, todos eles homens, casados, com filhos. O pai divorciado, com o qual tinha rompido relações, de forma unilateral, há mais de vinte anos, faleceu recentemente. A família não esperava que ela desse as caras no funeral. Afinal, vivia se vangloriando de que não tinha, de que nunca teve um pai. No entanto, lá estava ela. Compareceu ao velório usando um tubinho preto cafona. Chorou entusiasticamente. Mostrou-se dócil e solícita com os demais convivas. Eu estava lá. Ela ainda não tinha me matado.

Como eu já disse, a minha amiga de infância se tornara uma renomada professora universitária, dedicada, estudiosa, porém, de “gênio difícil”, que é o termo que geralmente se usa para definir uma pessoa que tem enormes dificuldades para lidar com terceiros. Fiquei sabendo que ela se indispôs com a maior parte dos colegas de departamento. Atualmente, mora sozinha num flat pequeno, porém, confortável. Pelo que apurei, desde que se mudou para o prédio, já encrespou com vários condôminos, por se sentir incomodada com o volume alto da música, com a gritaria das crianças brincando na área de lazer e, até mesmo, com a fumaça de cigarro que ascendia da sacada do apartamento imediatamente abaixo ao seu.    

Teve alguns namorados, mas, nenhum dos relacionamentos vingou a ponto de se tornar uma união estável. Vive uma relação atribulada com a mãe, uma senhorinha dócil e gentil que beira os noventa anos de idade. Já rompeu e já reatou relações com a progenitora um sem-número de vezes. Sempre repetia o desagradável modus operandi: comparecia à casa da mãe, vociferava, gesticulava, humilhava e a fazia chorar. A matrona não compreende o temperamento hostil da filha e chora todo santo dia, com pena dela, sentindo-se culpada sabe-se por quê. Nunca fez nada de ruim contra a filha.

Está aprontando um escarcéu durante o inventário do pai. Quer ficar com a cobertura onde o velhote — um médico aposentado — morava sozinho, embora, nunca mais o tivesse visitado ao longo das última duas décadas. Bizarro. Não se entende com os irmãos. Acredita piamente na existência de um complô familiar contra ela. Sente-se prejudicada, injustiçada, incompreendida e mal-amada. Contratou um advogado por intermédio de quem fala com os irmãos, somente o indispensável, a partir de agora.

Sei que ela não é doida. Não rasga dinheiro. Não sai pelada na rua. Não usa drogas legais ou ilegais. Construiu uma carreira sólida, exitosa, reconhecida pelos seus pares. Edificou um patrimônio material considerável e administra com propriedade as próprias finanças. Cultiva o perfil de megera, mas, não consigo depreender em qual modalidade de diagnóstico psicológico ou psiquiátrico ela se enquadre.

Fato é que me sinto angustiado. Não queria que fosse assim, porque, na toada em que está, sei que o futuro não reserva coisas boas para ela. Como diria o poeta, é impossível ser feliz sozinho. Não sei o que mais poderia fazer para ajudá-la. Se é que ela necessite da ajuda de um morto. Preciso muito compreender como, onde e por que ela mudou. Respostas. Eu preciso de respostas. Antes que a nossa definhada amizade seja enterrada viva, juntamente com o meu cadáver serelepe, triste e claudicante.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.