O mundo é vasto demais, e o universo comporta dois trilhões de galáxias, cada uma com seus cem bilhões de estrelas. Essa sentença vem e vai no transcorrer dos 130 minutos de “Amigos e Filmes”, a ardilosa dramédia do tailandês Atta Hemwadee, sobre isso, amizades (ou o seu inverso) permeadas pelo desejo (ou o compromisso) de se rodar uma história. Hemwadee disseca as inconstâncias de um amadurecimento especial, passado entre vicissitudes definitivas, mirando um grupo de estudantes reunidos em torno da produção e lançamento de um curta-metragem.
O que pareceria um trabalho desafiador, mas também cheio de jubilosas recompensas, acaba por trazer à superfície uma cornucópia de emoções adversas, sentimentos com que têm de lidar mais por instinto de autopreservação que por algum possível afeto que nutram uns pelos outros — o que, conforme se vai assistindo, está muito longe de ser verdadeiro. Dotando seu trabalho de ritmo, guinadas muitas vezes artificiosas, mas tecnicamente irrepreensíveis, referências metalinguísticas pouco óbvias e, sobretudo, humor, o diretor-roteirista explora a essência dos afetos naquela fase em que a linha do tolerável e do monstruoso está sempre meio borrada.
A juventude se nos apresenta como um ajuntamento de autocobranças, satisfações que achamos que devemos ao universo — quando o universo não faz a menor ideia de quem somos, e não tem nenhuma pretensão de fazê-lo —, dilemas existenciais característicos, muitos profundos como um balde, e dúvidas quanto ao que reserva-nos o futuro, essas de fato preocupantes. Tememos ser surpreendidos pelos tantos inesperados da vida sem que ainda estejamos prontos, o que, como todos sabemos os que já passaram de determinada idade, sói acontecer com uma frequência meio enjoativa. O momento em que somos impelidos a tomar nossas próprias decisões e nos lançar ao mundo, sem qualquer certeza sobre se resistiremos ao arrojo da nossa ousadia, vem num jato; é quando sentimos que, se não tomamos posse de nosso destino naquele instante mesmo e decidimos o que quer que seja, depois poderá ser irremediavelmente tarde demais.
É sobre essa coragem (ou a falta dela) de que fala Hemwadee. Pae é expulso do colégio que frequentava depois de cortar o rosto da aluna que o xingava de fedorento, e vai para uma nova escola, onde terá de se livrar de armadilhas igualmente perigosas. Na sala, ele se senta ao lado de Joe, o rapaz mais popular, que, por uma dessas conveniência dos filmes, vai com a cara dele. Nesses primeiros movimentos, o enredo gira em torno da desconfiança do personagem de Anthony Buisseret para com o veterano Joe, que sai de cena num golpe um tanto abrupto e sem dúvida bastante forçado. Enquanto na história, Pisitpol Ekaphongpisit é uma presença magnética, capaz de atrair todos os olhares; o mistério encerrado por seu mocinho, que conduz ao tal curta-metragem, esquenta o filme para a entrada de Bokeh, ao contrário de Joe, uma garota nada ingênua.
A dobradinha de Buisseret e Pisitpol Ekaphongpisit cede espaço à performance precisa e reveladora de Thitiya Jirapornsilp, que serve de elo do primeiro núcleo para a subtrama de Ohm, o verdadeiro e injustiçado herói. Próximo ao desfecho, Ingkarat Damrongsakkul captura a essência do que Hemwadee parecia querer dizer desde o início, algo sobre falsas aparências, usurpadores e uma beleza que resiste ao fim da matéria. Exatamente como se dá com o cinema.
Filme: Amigos e Filmes
Direção: Atta Hemwadee
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Comédia/Coming-of-age
Nota: 8/10