Para maiores de 18 anos: Demi Moore e Danielle Panabaker em um dos filmes mais perturbadores da história do cinema, na Netflix Divulgação / Element Films

Para maiores de 18 anos: Demi Moore e Danielle Panabaker em um dos filmes mais perturbadores da história do cinema, na Netflix

A ideia de “banalidade do mal”, desenvolvida por Hannah Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém” (1963), permanece como um conceito intrigante e, até certo ponto, irrefutável. Arendt, uma das mais influentes pensadoras políticas do século 20, foi a Jerusalém para acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, uma das peças-chave na engrenagem genocida do regime nazista. O que encontrou foi, no entanto, surpreendente: longe de ser um monstro, Eichmann era um homem comum, desprovido de qualquer sinal evidente de maldade extraordinária. Ele não parecia ser movido por um ódio especial ou uma ambição desmedida. Era, ao contrário, uma figura de mediocridade, que simplesmente cumpria ordens sem questionar, refletindo a natureza rotineira e burocrática do mal, como uma engrenagem que opera silenciosamente dentro de um sistema maior e muito mais perverso. Para Arendt, essa constatação foi ao mesmo tempo chocante e fascinante. O fato de que uma pessoa absolutamente comum pudesse cometer os mais atrozes crimes contra a humanidade, apenas por obedecer cegamente, sem uma análise crítica ou moral, trouxe à tona a dimensão perturbadora de como a obediência passiva pode ser devastadora.

Já no filme “Instinto Secreto” (2009), dirigido por Bruce A. Evans, essa reflexão sobre o mal adquire uma roupagem diferente, mas ainda ressoa a ideia central da filósofa. O protagonista, interpretado por Kevin Costner, é um homem que, à primeira vista, parece perfeitamente ajustado à sociedade. Ele é um empresário de sucesso, um pai dedicado e um marido amoroso. No entanto, escondido por trás dessa fachada impecável, encontra-se um assassino em série, cuja compulsão por matar não é fruto de ideologias políticas ou de ódios pessoais, mas sim de uma necessidade interna que ele não consegue controlar. Esse personagem, embora radicalmente diferente de Eichmann em suas motivações, simboliza outra face do mal banal: o monstro que se esconde sob o disfarce de uma pessoa “normal”. A violência com que Brooks age é guiada por uma satisfação pessoal e, de certa forma, destituída de grandes justificativas, o que o torna ainda mais assustador. Ele vive uma dualidade perturbadora, na qual o homem refinado, exemplo de virtude, convive lado a lado com um serial killer frio e calculista.

Brooks, o personagem de Costner, é o típico exemplo de como o mal pode se manifestar de maneira silenciosa e calculada, sem os ruídos da moralidade ou da consciência. Sua habilidade em esconder sua verdadeira natureza de todos à sua volta torna o filme ainda mais impactante, pois levanta questões sobre a confiança que depositamos nas pessoas que aparentam ser impecáveis. O alter ego de Brooks, Marshall, interpretado por William Hurt, serve como uma espécie de consciência crítica do personagem, mostrando como o mal pode ser uma força interna que, muitas vezes, convive tranquilamente com uma vida pública exemplar. A relação entre os dois personagens, Brooks e seu alter ego, ilustra a luta constante entre as duas faces de uma mesma pessoa: o lado que cumpre as expectativas sociais e o lado que cede aos impulsos mais sombrios.

“Instinto Secreto” também trabalha de maneira perspicaz com a ideia de que o mal não precisa necessariamente ser grandioso ou dramático para ser perigoso. Ao contrário de Eichmann, que era uma peça fundamental em uma máquina genocida, Brooks atua em um nível muito mais íntimo, cometendo seus crimes de maneira quase casual, sem o peso de um regime opressor por trás de suas ações. Ele é movido por uma perversão pessoal, que o leva a eliminar pessoas apenas por prazer. No entanto, essa frieza e falta de motivos claros o aproximam da tese de Arendt: o mal pode ser algo rotineiro, disfarçado de normalidade, e mesmo sem grandes causas ou justificativas, ainda pode ser devastador em suas consequências. O diretor Bruce A. Evans constrói um personagem que, embora não tenha o peso histórico de Eichmann, simboliza essa mesma ideia de um mal silencioso, que opera nas sombras da vida cotidiana.

Ao longo do filme, o espectador é confrontado com a habilidade de Brooks em manipular sua vida dupla com maestria, sem jamais levantar suspeitas sobre sua verdadeira natureza. Ele é admirado pela comunidade e respeitado em sua vida profissional, enquanto, ao mesmo tempo, tira vidas de maneira metódica e sem remorso. Essa dicotomia entre a imagem pública e o comportamento privado do personagem é o que torna “Instinto Secreto” uma reflexão interessante sobre a capacidade humana de cometer atos monstruosos enquanto mantém uma aparência de completa normalidade. O roteiro de Evans e Raynold Gideon cria uma atmosfera de tensão constante, onde o espectador é levado a questionar até que ponto conhecemos verdadeiramente as pessoas à nossa volta e quais segredos podem estar escondidos por trás das máscaras que todos usamos no dia a dia.

Em última análise, “Instinto Secreto” reforça a ideia de que o mal não precisa ser espetacular para ser aterrorizante. O protagonista do filme, assim como Eichmann no relato de Arendt, mostra que o mal pode se manifestar de maneiras sutis, muitas vezes sob a forma de uma rotina aparentemente inofensiva. No caso de Brooks, o prazer em matar é sua perversão particular, mas a capacidade de esconder essa verdade de todos à sua volta é o que o torna ainda mais perigoso. Esse mal, que se esconde por trás da fachada de normalidade, é o mesmo que Arendt identificou no julgamento de Eichmann, ainda que em contextos diferentes. Ambos os casos, porém, revelam como a banalidade pode ser uma das formas mais insidiosas do mal.


Filme: Instinto Secreto
Direção: Bruce A. Evans
Ano: 2007
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10