Adaptação de livro de Annie Ernaux que foi número 1 de vendas na França por 8 meses, com 400 mil cópias vendidas, na Netflix Divulgação / Magali Bragard

Adaptação de livro de Annie Ernaux que foi número 1 de vendas na França por 8 meses, com 400 mil cópias vendidas, na Netflix

Decidir envolver-se emocionalmente com outra pessoa é um processo complexo e, por vezes, irracional. Aos poucos, as emoções tomam controle, superando qualquer lógica e transformando-se em uma espiral que pode culminar em obsessão, paranoia, frustração e tristeza. Seguindo a linha de raciocínio dos versos de Pessoa, o amor genuíno exige uma dose de ridículo, de atos que desafiam nossa própria natureza, levando-nos a comportamentos que, sob o crivo da razão, jamais adotaríamos.

Sentimos orgulho dessas atitudes, um mecanismo de defesa que mascara a vergonha iminente. No entanto, a percepção de que há algo de superficial ou falso na relação é rapidamente ofuscada pela ilusão de autenticidade, reforçando a crença de que o sentimento é mais real justamente porque se revela de forma tão íntima e exclusiva. E assim, o ciclo de engano e sofrimento nunca encontra um fim definitivo.

A realidade paralela vivida por casais apaixonados, onde cada indivíduo está perdido em uma fase diferente do relacionamento, é apenas um dos aspectos que revelam o quão saudável ou tóxico pode ser um vínculo amoroso. A partir dessa percepção, surgem as conclusões desconcertantes que delineiam o verdadeiro grau de comprometimento entre duas pessoas. Por vezes, as expectativas e desejos de cada um são tão divergentes que fica evidente que ambos possuem visões completamente diferentes sobre a vida compartilhada, como se, na essência, não se conhecessem de fato.

O filme “Pura Paixão” (2020) retrata com precisão esse desencontro entre um casal. A diretora Danielle Arbid busca representar visualmente o turbilhão emocional e psicológico que consome dois personagens enigmáticos, cujas demandas e expectativas se opõem de forma irreconciliável.

Os protagonistas, Hélène e Aleksandr, nascem da obra de Annie Ernaux, escritora francesa vencedora do Nobel de Literatura em 2022, e ganham vida nas atuações intensas de Laetitia Dosch e Sergei Polunin. O enredo do filme foca na simplicidade de uma relação marcada por percepções divergentes sobre o amor. Hélène, uma professora universitária recém-divorciada, acredita amar Aleksandr, mas, no fundo, anseia por algo que traga sentido à sua vida.

Por outro lado, Aleksandr, consciente de suas próprias necessidades, não busca aventuras nem grandes mudanças. Arbid, e por extensão Ernaux, exploram o velho clichê do homem que procura constantemente emoções extraconjugais, em contraste com uma mulher desesperadamente romântica, solitária e vulnerável. Seria simplista e injusto atribuir o comportamento de Hélène exclusivamente à idade, como se estivesse presa ao início da meia-idade e às inevitáveis perdas que a acompanham.

No entanto, o filme sugere que, para ela, os melhores momentos da vida agora residem no passado, uma memória agridoce que alimenta suas inseguranças. A ausência de detalhes sobre como essas duas almas machucadas se encontraram é um ponto fraco da narrativa, deixando uma lacuna que se torna cada vez mais perceptível à medida que a trama avança.

O ponto alto do enredo surge quando Hélène, em um momento crucial, rejeita a postura inicial de Aleksandr, que parece refletir uma mentalidade machista à primeira vista. No entanto, essa rejeição revela uma característica ainda mais perturbadora no comportamento do amante: sua psicopatia sutilmente mascarada por uma fachada de frieza emocional. O desfecho do filme, tão aguardado pelo público, remete à icônica cena final de “Os Girassóis da Rússia” (1970), de Vittorio de Sica, mas sem a simbologia do trem. A separação entre Hélène e Aleksandr, embora previsível, é conduzida de maneira inesperada, proporcionando a grande reviravolta de “Pura Paixão”.


Filme: Pura Paixão
Direção: Danielle Arbid
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10