A joia premiada da Netflix que você ainda não descobriu

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Sian Heder vem se firmando como uma das vozes mais originais quando se trata de retratar famílias não convencionais. Desde o lançamento de “Tallulah” (2016), a diretora, que já havia explorado temas como maternidade e solidão em seu curta “Mother” — uma produção de 2006 onde ela tocava em pontos cruciais como a negligência emocional do parceiro após a chegada de um bebê e o isolamento inesperado que muitas mulheres enfrentam nesse novo papel —, conseguiu aprimorar sua capacidade de tratar dessas questões de maneira envolvente e profunda. Poucos cineastas conseguem capturar a sensação de solidão no contexto da maternidade como Heder, abordando o tema de múltiplas perspectivas e mostrando que, após a chegada de um filho, as maneiras de experimentar o isolamento se diversificam.

Ao comparar os dois períodos da carreira de Heder, vemos claramente uma diretora muito mais madura em “Tallulah”, tanto como artista quanto como mulher. Dez anos após “Mother”, ela demonstra um crescimento notável na forma como constrói e desenvolve os arcos dramáticos de suas personagens, oferecendo narrativas complexas e envolventes. Esse amadurecimento contínuo também se reflete em seu trabalho mais recente, “No Ritmo do Coração” (2021), uma comovente história sobre uma jovem ouvinte que se torna o elo essencial entre seus pais surdos e o mundo ao seu redor. A trajetória de Heder como mãe e diretora parece se entrelaçar com suas histórias, tornando o roteiro de “Tallulah” ainda mais potente, preenchendo possíveis lacunas com as experiências pessoais que ela vivenciou, especialmente durante a gestação do seu filho. Saber que seu filme seria selecionado para o Festival de Sundance enquanto estava grávida de seis meses e, posteriormente, receber a notícia da aprovação com seu filho já dando os primeiros passos, é um exemplo claro de como a vida e a arte de Heder se complementam de forma singular.

Se a maternidade pode ser cercada de várias formas de solidão, também é um território onde se encontram vícios e, em alguns casos, maldades. Heder utiliza essa faceta menos romântica da maternidade para construir uma narrativa que beira o absurdo, mas que, ao mesmo tempo, toca em questões profundas sobre a vida de três mulheres. A personagem central, Tallulah, interpretada por Ellen Page — que desde então se identifica como Elliot, um homem transgênero —, é uma figura marginal que percorre os Estados Unidos em um furgão velho. Seu namorado, Nico, vivido por Evan Jonigkeit, acompanha essa jornada, ainda que pareça desconectado tanto daquela vida quanto da própria Tallulah. Quando o relacionamento desgastado e seus gestos de afeto não correspondidos começam a sufocá-lo, Nico decide ir embora, e Tallulah também resolve que é hora de partir. A partir desse ponto, a trama se complica quando Tallulah procura Margo, mãe de Nico, interpretada com maestria por Allison Janney. Margo, abandonada pelo filho e pelo marido, que a trocou por outro homem, vive em um apartamento que tecnicamente não é seu, mantendo-se nele graças à impossibilidade de um divórcio formal.

A trama se intensifica quando Tallulah aparece na vida de Margo com uma suposta neta, filha de Nico. No entanto, a menina, na verdade, é filha de Carolyn (interpretada por Tammy Blanchard), uma mulher entediada que deixou a criança sob os cuidados de Tallulah para poder encontrar seu amante. A partir dessa premissa, Heder constrói uma história que, apesar de inverossímil em alguns momentos, é tocante e profundamente humana. Embora, na vida real, seja difícil acreditar que Margo nunca descubra a verdadeira identidade de Tallulah, especialmente em um mundo tão conectado, essa licença poética nos permite refletir sobre temas mais profundos, como o isolamento emocional e a importância de cuidar do outro, seja uma criança ou um parceiro. Cuidar de alguém é um privilégio que nem todos têm, e Heder usa essa ideia para explorar o que significa ser mãe e estar presente, mesmo nas circunstâncias mais difíceis.

A maternidade, frequentemente retratada como algo sagrado e intocável, é aqui apresentada de maneira mais crua e realista. Heder desafia a visão idealizada que muitos têm desse papel, mostrando que a maternidade é, sim, um dos eventos mais marcantes na vida de uma mulher, mas que também precisa ser pensada, desejada e, em alguns casos, evitada. Esse olhar mais crítico sobre a maternidade é uma das marcas de Heder, e é algo que ela faz com uma precisão e sensibilidade raras no cinema.

Além do roteiro bem construído, Heder teve a sorte de contar com um elenco afiado, onde Ellen Page e Allison Janney se destacam. Page transita com facilidade entre as diferentes nuances de Tallulah, dando à personagem uma profundidade que vai além do simples estereótipo de uma jovem desajustada. Janney, por sua vez, equilibra perfeitamente o drama e o humor mordaz, criando uma Margo vulnerável e ao mesmo tempo resiliente. Blanchard, embora talentosa, acaba se perdendo um pouco em meio à força das atuações de Page e Janney, mas isso não diminui o impacto geral do filme.

“Tallulah” marca um novo passo na carreira de Sian Heder, que demonstra uma segurança cada vez maior em contar histórias que desafiam convenções e exploram os aspectos mais sombrios e complexos das relações humanas. A colaboração entre Page e Janney, que já havia rendido bons frutos em “Juno” (2008), se mostra mais uma vez uma combinação vencedora, conferindo a “Tallulah” uma profundidade e um impacto emocional que ressoam muito além da tela.


Filme: Tallulah
Direção: Sian Heder
Ano: 2016
Gênero: Drama
Nota: 9/10