As promessas de amor se escrevem nas ondas do mar, com o vento. Talvez seja por isso que tanta gente tem recorrido a métodos, digamos, heterodoxos quando se trata de procurar companhia para um fim de semana na praia ou garantir alguma satisfação numa noite chuvosa, o que fomenta uma imensa cornucópia de perguntas, a começar por uma óbvia: quando foi que fomos deixando que nossa humanidade, maravilhosa em suas imperfeições, se tornasse um peso diante das facilidades da vida pós-moderna?
Craig Gillespie responde algumas delas em “A Garota Ideal”, melodrama com pitadas generosas de um humor para muito além do óbvio, sobre o que leva um homem de 27 anos abandonar qualquer ilusão acerca das mulheres de carne e osso e entregar-se ao delírio de namorar uma boneca de plástico. No segundo longa de uma carreira prolífica, Gillespie, um diretor hábil o bastante para tecer comentários mordazes sobre a parafilia em questão, mas também sensível para buscar entender as razões de seu protagonista, quiçá apenas um homem pouco seguro de si mesmo num mundo feito de aparências.
Essas figuras tortas (bem como as certinhas) caem feito uma luva para Ryan Gosling. Um dos atores mais talentosos de sua geração, Gosling, que depois da estreia de “A Garota Ideal” deu vida a pianistas frustrados, motoristas de gangue, astronautas sisudos e, engraçado, o boneco mais famoso da cultura pop, aqui é Lars Lindstrom, um pequeno burocrata que evita o quanto pode o convívio com outros seres humanos — mas que, curiosamente, segue frequentando os cultos da igreja próximo a sua casa, numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos (embora o filme tenha sido rodado em Ontário, no centro-leste do Canadá).
Sua mãe morreu há algum tempo, seu pai recém-falecido enfrentou um longo processo de degenerescência emocional e agora ele tem morado na edícula da propriedade da família, atrás da casa principal, que ficou para o irmão mais velho, Gus, e a cunhada grávida do primeiro filho do casal. Karin insiste em convidá-lo para jantar e, assim, quem sabe reconectar-se consigo mesmo, mas Lars literalmente se esquiva, deslizando pelas paredes e mantendo seu pequeno reino às escuras. Nesse primeiro ato, a roteirista Nancy Oliver dá quase o mesmo espaço para Gosling e Emily Mortimer e Paul Schneider, o pequeno e indesejado clã de Lars, decerto para justificar o argumento central do longa.
Lars decide comprar a boneca que um colega viciado em pornografia lhe mostrara. Quando a encomenda chega, ele está determinado a fazê-la passar por uma mulher paraplégica a quem chama de Bianca, explicando a Karin e Gus também que se trata de uma missionária brasileira-dinamarquesa (risos), a quem deve acompanhar para todos os lugares que ela precise. Gillespie entra no terreno do nonsense indicando que a cunhada e o irmão de Lars dão a entender um justo choque, mas que Karin está confiante de que este seja um primeiro movimento em direção a uma vida dita normal. Aí, o enredo abre-se para as sessões com Dagmar, a terapeuta vivida sem chavões por Patricia Clarkson, que inclui Bianca no tratamento (risos desbragados).
O espectador vira um cúmplice e um legitimador do distúrbio de Lars Lindstrom, na medida em que passa a buscar em si mesmo um ou outro ponto de contato com o personagem. Na maioria dos bons atores de Hollywood, Lars tornar-se-ia uma vergonhosa caricatura, mas não com Gosling. Seu equilíbrio cartesiano encasula Lars numa serenidade anômala, chegando ao cúmulo de tornar razoável crer que o “relacionamento” desse homem perturbado se sustente num amor platônico, em que pese a boneca apresentar orifícios. Como já disse alguém, o coração tem razões que a razão mesma desconhece. Então que Lars e Bianca sejam felizes até que a morte (ou o mofo) os separe.
Filme: A Garota Ideal
Direção: Craig Gillespie
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Comédia/Romance
Nota: 9/10