A comédia mais encantadora da história do cinema está no Max, pronta para aquecer seu coração

A comédia mais encantadora da história do cinema está no Max, pronta para aquecer seu coração

Malgrado continuem a surgir filmes que arranquem do chão a escassa poesia do mundo, não adianta: houve uma época em que o cinema era, sim, mais suave, mais inspirado, como um bolo cheio de camadas do qual poderia pular uma bela mulher convidando todos a cair na dança. “Cantando na Chuva” é a própria encarnação daquela verdadeira Era de Ouro de Hollywood, em que até a sucata era preciosa. A MGM só precisou encomendar uma nova música para que o projeto de uma história que atravessaria a segunda metade do século 20 saísse do papel encantando gerações com seu jeito singelo de falar das eternas inseguranças de cada um, expondo também uma brusca nova realidade com que a indústria cinematográfica teve de lidar — e que a transformou para sempre. Stanley Donen (1924-2019) e Gene Kelly (1912-1996), dois gênios em verter movimento em ritmo e fazer dessa alquimia a fórmula para o entretenimento sofisticado de que tantos sentem falta.

Don Lockwood e Lina Lamont, dois veteranos do cinema mudo, lançam o que parece seu último trabalho. Qualquer um é capaz de imaginar do que o roteiro de Betty Comden (1917-2006) e Adolph Green (1914-2002) vai tratar alguns lances mais tarde, porém, até que esse momento se anuncie, os dois posam sorridentes para as câmeras dos fotógrafos na estreia do filme, para o qual são convidadas as estrelas mais brilhantes do firmamento hollywoodiano. Kelly e Jean Hagen (1923-1977) eram já astros estabelecidos do mercado quando se deparam com a ascensão da jovem e afinada cantora que justifica boa parte do enredo. Kathy Selden, a mocinha de Debbie Reynolds (1932-2016), aos poucos vai se impondo pela graça e pela beleza quase pueril, reflexos do que Reynolds foi capaz de preservar ao longo da vida, mas é mesmo Hagen quem arranca risadas e uma certa aversão da plateia, à medida que Lamont marca território, cercando Lockwood apenas para não dar o braço a torcer, como se obedecendo a algum manual de como uma verdadeira diva tinha de se comportar. Ironicamente, a atriz renuncia a muito de sua vaidade profissional e de mulher — ainda mais exacerbadas àquela época — sempre que sua personagem abre a boca. A voz esganiçada de Lamont, um dos motes mais simbólicos a conduzir a trama, acaba sendo sua ruína quando o som torna-se, afinal, o novo paradigma. E tanto pior quando a vedete mais tarimbada é forçada a disputar contra o veludo de Reynolds, que até se submete a uma farsa para salvar a rival.

“Cantando na Chuva” é muito mais que o número que empresta o nome ao longa, o conhecidíssimo solo em que Kelly sapateia sob uma tormenta artificial que alaga o estúdio, sapateando e subindo e descendo o meio-fio para no final ser interpelado pelo policial e presentear um homem que vem no sentido contrário com o guarda-chuva que não usara senão como adereço cênico. Divertidos e solares, “Moses Supposes” (“Moisés supõe”, em tradução literal) e “Good Morning” (“bom dia”, idem) lembram-nos da pujança de um cinema que foi se deixando morrer em nome de uma modernidade caduca, mas renasce aqui e ali, a exemplo de megaproduções como “La La Land: Cantando Estações” (2016), e “Babilônia” (2022), ambos de Damien Chazelle. Donen e Kelly nos oferecem uma viagem no tempo, ao um tempo onde a graça tinha mais importância.


Filme: Cantando na Chuva
Direção: Stanley Donen e Gene Kelly
Ano: 1952
Gêneros: Musical/Comédia
Nota: 10