Há uma poesia escandalosa, maldita, em “O Túmulo dos Vaga-Lumes”, surpreendentemente um dos melhores filmes de guerra de que se tem notícia. Pode ter sido cálculo falar de um assunto tão indigesto e plural usando da suavidade e do controle da animação; todavia, é precisamente por meio de traços simples e cenas que se desenrolam sem pressa, dando ao público tempo para absorver tudo quanto acontece, que Isao Takahata (1935-2018) vai ao ponto e mostra bem mais do que se poderia esperar de um desenho animado. A experiência diante do roteiro de Takahata, baseado no romance semiautobiográfico de Nosaka Akiyuki (1930-2015), de 1967, é uma imersão tão profunda nas contradições inevitáveis da condição humana que acaba-se questionando também a função desse gênero e do próprio cinema, um caminho a mais para se denunciar a estupidez, a intolerância, o ódio, e, no outro polo, a pulsão de vida confrontada com a morte que contamina tudo.
Na iminência do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), bombas de napalm caem com mais frequência sobre o Japão, pontuando a cena dos pontos de fogo que se estabelecem como a marca visual mais impactante aqui. Os incêndios tornam-se ainda mais devastadores num bairro humilde de Kobe, onde os casebres são erguidos com madeira e papel. Num deles, moram Seita e Setsuko, um adolescente de uns quinze anos e sua irmã caçula uma década mais nova, que, como se vai assistir instantes depois, ficarão órfãos de mãe, vítima de queimaduras graves depois de uma das últimas ofensivas americanas.
Na introdução, o diretor-roteirista mostra Seita jogado numa estação de metrô, o que nos leva a especulações sombrias a respeito do destino de Setsuko; enquanto isso, Takahata explica que o pai dos dois está servindo na Marinha, e, em sendo assim, os irmãos passam a morar com uma tia, que não demora a hostilizá-los, surrupiando-lhes o arroz que conseguem mediante a venda dos quimonos de sua mãe e dirigindo-lhes palavras talvez até mais duras que os petardos com substâncias corrosivas. Seita perambula pela vizinhança e encontra um velho esconderijo, para onde leva Setsuko, e a partir daí, os dois conhecem um outro lado da indiferença e da crueldade, adaptando-se àquele novo ambiente insalubre, desnutridos, enfermos, convivendo com ratos, piolhos, mas felizes, quase radiantes, até que se confirma a suspeita fomentada no prólogo.
A estética neorrealista de “O Túmulo dos Vaga-Lumes”, tão orgulhosamente distinta de produções congêneres a exemplo de “O Rei Leão” (1994), de Jon Favreau, “Princesa Mononoke” (1997), de Hayao Miyazaki, e “O Gigante de Ferro” (1999), de Brad Bird, todos frutos de uma leva temporal de animações com temas sérios, depressivos até — e portanto voltadas para adultos —, conduz o espectador a uma meditação de imprevisíveis efeitos, tal como se deu com o livro de Akiyuki quando do lançamento, passados quase sessenta anos. Naquela gruta onde os protagonistas vivem seus dias mais venturosos e trágicos, iluminada pelos pirilampos que morrem de exaustão, imolando-se em nome da beleza, cabe o mundo inteiro, mais e mais enganado e enganoso, como sugeriu Platão (428 – 348 a.C.) há 2.500 anos.
Filme: O Túmulo dos Vaga-Lumes
Direção: Isao Takahata
Ano: 1988
Gêneros: Animação/Guerra/Drama
Nota: 10