O suspense paranoico da Netflix: aquele tipo de filme que só aparece de vez em quando Divulgação / Netflix

O suspense paranoico da Netflix: aquele tipo de filme que só aparece de vez em quando

As doenças que periodicamente afetam a sociedade, tal como em um organismo vivo, são muitas vezes respondidas com supostas curas que rapidamente se revelam inadequadas. Embora “O Declínio” (2020), um thriller canadense, seja uma obra de ficção, sua proximidade com a realidade é inegável. O primeiro longa-metragem de Patrick Laliberté mergulha profundamente nos temores provocados pela paranoia da sobrevivência em ambientes extremos. Em meio à pandemia, a humanidade se viu forçada a confrontar novamente essas ansiedades, e o filme aproveita esse contexto para explorar sentimentos ainda mais destrutivos.

A estrutura narrativa de “O Declínio” é sucinta, com o suspense sendo meticulosamente construído ao longo de quase um terço do filme, momento em que ocorre a virada decisiva que prende a atenção do espectador até o desfecho. Durante esse percurso, Laliberté insere algumas pistas enganosas, principalmente ao retratar a jornada de Antoine, interpretado por Guillaume Laurin, de Montreal até a remota região de Laurentian, nos arredores de Québec. Desde o início, fica claro que esta não é uma simples viagem. Antoine acredita que o fim do mundo está se aproximando rapidamente, seja por meio de guerras ou pandemias que se espalham como rastilho de pólvora, levando ao inevitável colapso social. Ele se sente afortunado por ter sido convidado por Alain, papel de Réal Bossé, para participar de um rigoroso treinamento de sobrevivência, destinado a preparar os participantes para o iminente apocalipse global. Situada em uma vasta propriedade de 500 acres, a instalação é equipada com tendas, painéis solares, um depósito de combustível, estufas, gado e armadilhas para capturar animais selvagens, além de um arsenal destinado a defender o grupo de possíveis invasores humanos.

Antoine se junta a outros sobrevivencialistas: François (Marc-André Grondin), Anna (Marilyn Castonguay), Sebastien (Guillaume Cyr) e David (Marc Beaupré). O grupo é coeso, unido pela mesma preocupação sobre o futuro incerto do planeta, embora dois personagens se destaquem por razões distintas. David, interpretado por Marc Beaupré, mostra-se particularmente fanático pela causa defendida por Alain, com seu comportamento revelando traços psicóticos à medida que o filme avança. Ele demonstra uma obsessão perigosa por armas e por visões belicistas do mundo, prontamente aceitando soluções violentas para qualquer problema. Do outro lado, temos Rachel (Marie-Evelyne Lessard), uma ex-militar endurecida pela vida, que não tolera comportamentos indisciplinados. O trauma pela perda de seu parceiro, morto em combate, permeia sua personalidade, conferindo-lhe um amargor inegável, algo que ela não faz questão de esconder.

Um aspecto interessante do filme é a abordagem do “comportamento de manada”, termo introduzido pelo neurocirurgião britânico Wilfred Trotter. A ideia, derivada dos conceitos filosóficos de multidão de Søren Kierkegaard e do instinto de rebanho de Friedrich Nietzsche, oferece uma explicação para a obediência quase cega dos personagens, inclusive de Rachel, ao carismático e manipulador Alain. À medida que a narrativa avança, a comunidade retratada no filme ganha contornos de uma seita, com Alain no papel de um líder perigoso e habilidoso, capaz de disfarçar suas reais intenções enquanto seus seguidores o idolatram cegamente. Esse equilíbrio frágil se rompe quando uma das etapas do treinamento — que envolve o uso de armas e explosivos — sai terrivelmente errado, provocando uma escalada de tensões.

No segundo ato, “O Declínio” foca em uma intensa discussão entre os personagens sobre se devem ou não comunicar à polícia os eventos desastrosos que ocorreram. Tal ação colocaria Alain sob o escrutínio público como um maníaco perigoso, podendo ser acusado de homicídio culposo e terrorismo doméstico. A essa altura, o grupo já não é mais unido, e a divisão entre Alain e David, de um lado, e Antoine, Anna e Rachel, de outro, estabelece o conflito central que impulsiona o filme em sua fase final. A tensão aumenta, culminando em cenas de ação intensas, incluindo uma perigosa travessia de um rio congelado, onde o suspense atinge seu ápice.

Embora “O Declínio” ofereça várias surpresas ao longo do caminho, o clímax não reserva seu melhor para o final. A resolução do conflito não envolve diretamente as figuras mais antagônicas, Alain e Rachel, mas reflete duas visões políticas contrastantes. No entanto, o roteiro, escrito por Laliberté, Charles Dionne e Nicolas Krief, adota uma postura neutra, sem pender claramente para nenhum dos lados, o que pode tornar a mensagem um tanto ambígua. Apesar disso, a execução do filme é altamente competente, com sua narrativa habilidosa e seu visual impressionante, especialmente nas cenas que destacam as paisagens gélidas e deslumbrantes do inverno canadense, capturadas de forma magistral pelo diretor de fotografia Christophe Dalpé.


Filme: O Declínio
Direção: Patrick Laliberté
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10