A violência no Brasil dispõe de uma ampla rede de vasos comunicantes entre bandidos e as autoridades policiais desde sempre. Espetáculos dantescos, como o de agentes da lei flagrados em conversas risonhas nas quais combinam a divisão do butim resultante da apreensão de um carregamento de drogas, ou mesmo facilitam a ação de mandachuvas do crime organizado visando, por evidente, à aposentadoria que a carreira no serviço público não pode oferecer, foram se tornando a regra, até que dessa raiz envenenada surgiram ramos que se alastraram sem controle, colocando em risco os acordos de cavalheiros da bandidagem com os seus pares de farda e distintivo, obrigando que se reconfigurasse todo o esquema de tempos em tempos.
Nesse diapasão, começaram a florescer as lideranças que transmitem sua influência daninha a esposas, filhos, netos e apaniguados, e por aí que João Wainer quer navegar em “Bandida — A Número Um”, uma tentativa de pontuar a cronologia do mui peculiar narcotráfico carioca a partir da vida de alguém que conhece as entranhas do “movimento”. Junto com Patrícia Andrade e Cesar Gananian, Wainer adapta “A Número Um” (2015), o romance autobiográfico da hoje pedagoga Raquel de Oliveira de modo a destacar as passagens verdadeiramente sui generis da vida de uma garota sem chances, esquecida por todos, filha de uma mãe que teve que abdicar dela para sustentá-la. Esse é apenas um dos tantos paradoxos que se impuseram para Oliveira, a protagonista de uma história que vai da constante urgência de autoafirmação à euforia patológica que emana das flores do mal, resguardada por uma outra identidade.
A mãe de Rebeca trabalha num apartamento na avenida Atlântica, e duas vezes por mês elas voltam para a Rocinha, a maior favela latino-americana, onde moram num casebre no alto do morro. Numa dessas, aos nove anos, ela fica sozinha por um tempo mais estendido que o razoável, e uma avó, viciada no jogo do bicho e endividada, entrega a menina pelo perdão do débito mais uns caraminguás. A longa sequência de abertura cobre uma parte do enredo e explica uma boa medida do que vem a seguir, com Rebeca cada vez mais só, forçada a contar com a perigosa solidariedade de estranhos. Ela é despachada como uma ninharia qualquer para o barraco de Amoroso, e então tem início a descida a um inferno cheio de criaturas como ela, enjeitadas, furiosas, lutando pela sobrevivência com as armas de que dispõem. Wainer explora as múltiplas camadas desse cenário de onipresente caos, decifrando os códigos que cada uma dessas imagens esconde.
O prostíbulo de Amoroso, o chefão do tráfico da Rocinha, cede lugar a uma sala onde uma mãe de santo dá um jeito de livrar a garota da sanha pedófila do bandido, malgrado esses dois personagens continuem ligados até o fim de um deles. Talentos distintos e complementares, Milhem Cortaz e Maria Bomani são hábeis ao deixar vir à superfície aspectos quase clandestinos da personalidade de Amoroso e Rebeca, que, queiram ou não, partilham da mesma sorte. O bom elenco de coadjuvantes, com destaque para o Pará de Jean Amorim, com quem a anti-heroína vive um caso aflito, e Jorge Hissa na pele de Cara Murcha. Desperdícios a exemplo de Natália Lage como Joana, o braço direito de Amoroso, empanam o brilho de uma produção nacional que, embora muito inclinada a novamente conferir destaque ao fetiche da estética da pobreza e do atraso civilizatório, o faz da maneira mais original e persuasiva que consegue.
Filme: Bandida — A Número Um
Direção: João Wainer
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10