O faroeste arrepiante da Netflix que vai te fazer ficar em casa para assistir Divulgação / Saban Films

O faroeste arrepiante da Netflix que vai te fazer ficar em casa para assistir

A vida em um vilarejo remoto do Velho Oeste deveria ser o ápice da tranquilidade para aqueles que aprenderam a não esperar nada de ninguém. Entre essas figuras modestas está Patrick Tate, protagonista de “Terra Sem Lei”. Interpretado por Emile Hirsch, Tate é um personagem cheio de camadas, como se esculpido pela mais hábil das mãos. Hirsch entrega uma atuação que captura cada detalhe de sua personalidade, evocando uma complexidade rara. O diretor Ivan Kavanagh, irlandês como seu protagonista, aparenta sugerir um ambiente sereno, onde os dias se desenrolam sob colinas que parecem guardar as marcas do tempo. Aqui, o clima de paz é interrompido quase imperceptivelmente pela chegada de um forasteiro indesejado, cuja permanência trará profundas mudanças ao local. A tranquilidade do vilarejo se dissolve rapidamente, substituída por uma atmosfera de tensão crescente, à medida que a presença do visitante distorce a ordem até que a violência se torne inevitável. Aquele que se achava um refúgio de calma degenera em um caos marcado pela morte e pela decadência. Surge, então, uma nova forma de autoridade, onde o conceito de Estado se fragmenta e os que poderiam resistir, simplesmente optam por se silenciar. Essa escolha, ou falta dela, abre caminho para uma era de anarquia brutal, onde a lei do “olho por olho” se impõe. O vilarejo, antes pacato, se transforma em um campo de batalha moral, onde ninguém sai ileso.

O cerne da narrativa de Kavanagh está na relação improvável entre dois homens que, por natureza, deveriam ser inimigos. A trama se desdobra como um faroeste que expõe as fraquezas humanas em um cenário desolado e corrompido pelos impulsos mais primitivos. A inspiração no clássico “Por Um Punhado de Dólares” de Sérgio Leone é evidente, ainda que Kavanagh traga seu próprio toque ao reimaginar o conflito entre a lei e o caos, à semelhança do confronto visto em “Yojimbo” de Kurosawa, que serviu de base para o filme de Leone. Assim como o anti-herói de Clint Eastwood em San Miguel, o protagonista de Kavanagh se vê imerso em uma realidade onde as noções de moral e ética evaporam na poeira árida do deserto de Garlow. Situada ao longo da Trilha da Califórnia, essa cidade fantasmagórica parece existir à margem de qualquer ordem social. Diferente de Leone, porém, Kavanagh não oferece a possibilidade de reconciliação entre seu herói e o antagonista. A tensão entre eles é inexorável, sem espaço para qualquer tipo de aliança, selando o destino trágico da história.

Patrick Tate, um carpinteiro honesto e discreto, vive uma vida modesta, mas digna, ao lado de sua esposa francesa Audrey, interpretada por Déborah François, e seus dois filhos, Emma e Thomas. O pastor Samuel Pike, vivido por Danny Webb, é a figura de autoridade religiosa, constantemente evocando os Dez Mandamentos como guia moral para a comunidade. Casado com Maria, uma mulher 25 anos mais jovem, Pike personifica a ordem divina que governa o vilarejo, até a chegada de um estranho que desafia todas as normas estabelecidas. Albert, o Holandês, interpretado por John Cusack, é esse homem. Um fora-da-lei envolto em um ar de mistério e maldade, sua figura sinistra, vestida de preto, contrasta com a falsa pureza que o vilarejo tenta ostentar. Albert, indiferente às convenções sociais e religiosas locais, rapidamente começa a corroer a frágil estrutura da comunidade, explorando seus pontos fracos com uma precisão assustadora.

Sua chegada marca o início de uma espiral de degradação moral que culmina em um confronto decisivo com Tate, o único homem disposto a enfrentá-lo. Cusack dá vida a um vilão que parece invencível, minando cada valor que o vilarejo tanto prezava. Sua maior provocação talvez seja a instalação de um prostíbulo a poucos metros da igreja do reverendo Pike, como um ato final de desafio à ordem estabelecida. No clímax do filme, a batalha entre Tate e Albert culmina em um desfecho violento, manchando o altar da igreja com sangue e selando o destino dos dois. A imagem de um Cristo crucificado, coberto de sangue, assiste impotente ao desenlace dessa luta brutal, tornando-se um símbolo aterrador da perda completa de moralidade. Essa é uma das cenas mais marcantes e perturbadoras do cinema contemporâneo, refletindo a desintegração completa de qualquer noção de justiça ou redenção naquele canto esquecido do mundo.


Filme: Terra Sem Lei
Direção: Ivan Kavanagh
Ano: 2019
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10