Você já deveria ter assistido: o filme da Netflix tão intenso que Tarantino afirmou que gostaria de ter feito Sara Petraglia / Netflix

Você já deveria ter assistido: o filme da Netflix tão intenso que Tarantino afirmou que gostaria de ter feito

A arte sempre se configura como uma ponte multifacetada — ligando o indivíduo consigo mesmo, com o próximo e com a própria existência. Ela não apenas espelha as dinâmicas sociais contemporâneas, mas também desempenha um papel crucial ao influenciar e, às vezes, desafiar a construção histórica. No entanto, artistas contemporâneos frequentemente se veem na obrigação de reinterpretar suas mensagens originais, temendo o risco de serem considerados politicamente incorretos. Esta preocupação revela a transformação do discurso público, onde a aceitação e a conformidade com o consenso predominante passaram a ditar a relevância das expressões artísticas. Esse cenário, tanto severo quanto confuso, lança todos nós em um abismo onde a estabilidade do que é conhecido se desfaz e a capacidade de expressar ideias se torna nebulosa.

O vocabulário cotidiano é invadido por palavras e conceitos antes negligenciados, agora repetidos incessantemente como evidência de um fenômeno herdado da natureza humana: o efeito manada. Este fenômeno, comparável ao comportamento instintivo dos animais, revela uma tentativa desesperada de proteger-se. Além disso, conceitos associados a tédio, decadência moral e desordem mental têm aproveitado o vácuo criado pela restrição das liberdades individuais ao longo de um extenso período para desviar a atenção dos princípios fundamentais necessários para a construção de democracias sólidas, que dependem da crítica aberta e do pensamento destemido. No século XXI, somos compelidos a desenvolver novos modos de interagir com o mundo ao nosso redor, absorvendo e processando a realidade com uma velocidade sem precedentes. Este cenário caótico reflete a magnitude da catástrofe que é a vida pós-moderna.

Mesmo após quase oitenta anos desde a morte de Benito Amilcare Andrea Mussolini, os ecos de seu regime ainda reverberam fortemente. Mussolini, que encontrou seu fim enforcado e exposto publicamente no norte da Itália, foi vítima da revolta do povo que ele ostensivamente adorava — um amor irônico, dado que seus súditos eram frequentemente silenciados. Apesar de sua execução ter encerrado sua tirania, o legado de Mussolini persiste, alimentado tanto por aqueles que desconhecem o impacto de seu autoritarismo quanto por aqueles que o conhecem e ainda assim o valorizam. Conhecido por sua avareza e corrupção, Mussolini é um exemplo claro da falácia de que ditadores são zelosos guardiões do patrimônio nacional. Renato De Maria, em seu filme “Roubando Mussolini” (2022), explora um dos aspectos menos evidentes do fascismo — a corrupção financeira —, empregando uma alegoria sofisticada. O filme retrata Mussolini não apenas como um ditador brutal, mas também como um homem com ambições desmedidas e hipocrisia flagrante, sustentando amantes enquanto se proclamava defensor da moralidade e dos bons costumes.

De Maria escolhe não focar exclusivamente em Mussolini, apesar da referência implícita no título do filme, optando por explorar eventos fictícios em sua narrativa. Situado nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial em Milão, abril de 1945, o filme segue Isola, um notório ladrão, que descobre que a fortuna acumulada por Mussolini está escondida na Zona Negra, prestes a ser enviada para a Suíça, onde o tirano pretendia se exilar. O roteiro, coescrito por De Maria, Federico Gnesini e Valentina Strada, investiga as possibilidades e desafios enfrentados por Isola e sua equipe em sua missão, com um toque de hesitação justificável, dado o prestígio residual do líder italiano. Enquanto traça o plano, o filme oferece momentos líricos e românticos, com a participação de Matilda De Angelis como Yvonne, a namorada de Isola, cuja voz é acompanhada pelas canções do repertório popular italiano, um acerto notável na trilha sonora de David Holmes.

Embora Mussolini tenha exercido influência significativa durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e sua vida tenha sido profundamente marcada pela derrota do Eixo, há uma esperança de que o fascismo tenha sido verdadeiramente erradicado. Esta esperança é reminiscente da abordagem de Quentin Tarantino ao nazismo em “Bastardos Inglórios” (2009), onde a arte serve como um veículo para imaginar e aspirar a uma realidade diferente.


Filme: Roubando Mussolini
Direção: Renato De Maria
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Comédia/Crime
Nota: 9/10