Inspirado pelo niilismo e absurdismo de Samuel Beckett, filme da Netflix vai mantê-lo em transe por 108 minutos

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O homem vive atormentado pela sua reação frente aos obstáculos que aparecem em seu cotidiano. Mesmo refletindo profundamente sobre suas ações, ele sabe que, mais cedo ou mais tarde — frequentemente bem antes do que gostaria —, o destino irá cobrar-lhe uma explicação. Esse processo de cobrança abrange não só o que fez, mas também o que deixou de fazer. Perseguido pelas consequências de suas escolhas, a humanidade avança no tempo carregando um medo do futuro que muitas vezes se transforma em paranoia. Esse medo alimenta uma incessante batalha entre o bem e o mal, uma situação que a vida apresenta como um ciclo interminável de experiências que beiram o absurdo.

Histórias em que o homem comum se sente completamente deslocado, privado de qualquer influência sobre os eventos, obrigando-se a buscar refúgio em uma realidade paralela, são profundamente perturbadoras. Quando o cenário real é dominado por forças incontroláveis, o espírito dos indivíduos comuns é inquietado, enquanto aqueles com a habilidade de decifrar e interpretar a aura de obscurantismo e decadência intelectual da era se tornam agentes de mudança. Esses indivíduos, imersos em um cinismo muito apropriado, tentam promover transformações à sua maneira, mesmo que descrentes de mudanças verdadeiramente significativas.

A própria referência do título torna claro que é impossível discutir “Beckett” sem considerar, mesmo que brevemente, a obra do dramaturgo que empresta seu nome ao filme e ao personagem central. Samuel Beckett (1906-1989), dramaturgo irlandês, tinha uma habilidade quase sobrenatural para extrair da alma humana o que há de mais desprezível e lamentável: a pequenez visceral e metafísica do ser humano em face de um mundo vasto, implacável e profundamente perverso. Não é necessário um diploma de instituições prestigiosas para entender que este mundo, na maioria das vezes, é o Estado — uma entidade omnipresente, colossal e insaciável por resultados. Quanto mais o homem busca uma liberdade, mais o sistema demonstra que tal liberdade é ilusória, relegando-o a sublimar sua fraqueza humana e alimentar a máquina do poder sem contestação, até que a morte lhe ofereça alívio.

O roteiro de Ferdinando Cito Filomarino e Kevin A. Rice presta uma modesta homenagem a Beckett e sua famosa peça “Esperando Godot” (1952). Eles reconhecem que o texto original foi escrito em francês e estreou no Théâtre Babylone em Paris, uma cidade ainda marcada por seis anos de uma guerra devastadora, sob a direção de Roger Blin (1907-1984). O nome Beckett é sinônimo imediato do teatro do absurdo, uma abordagem que Beckett desenvolveu para confrontar a loucura da vida. É precisamente esse vínculo que Filomarino e Rice utilizam para narrar a história de Beckett, um americano tranquilo interpretado por John David Washington, que se vê em férias na Grécia. O diretor e seu colaborador reimaginam Vladimir e Estragon como Beckett e sua namorada April, interpretada por Alicia Vikander, uma estrela que sabe tanto brilhar quanto deixar seu parceiro brilhar. A trama segue com o casal fugindo de um perigo, seja real ou imaginário, e, quando se deparam com um infortúnio, inicia-se uma caçada implacável até o desfecho, com gregos hostis como os antagonistas perseguindo Beckett.

Esse aspecto do enredo de “Beckett” me levou a reflexões persistentes. É difícil acreditar que um povo ordenado como o grego possa gerar indivíduos que atacam um estrangeiro, e ainda por cima de pele escura, especialmente considerando seu passado recente de brutal subjugação pela Turquia. Prefiro considerar que isso se trata da essência do teatro de Beckett, transposto para a tela por um diretor e um roteirista mais audaciosos do que o cinema tem conhecido ultimamente.


Filme: Beckett
Direção: Ferdinando Cito Filomarino
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10