A condição da mulher na pós-modernidade talvez seja o emblema máximo quanto a demonstrar na prática as mudanças pelas quais o mundo passou no último meio século. Se até meados dos anos 1970 ver uma mulher em cargos de chefia era como deparar-se com um marciano típico, verde e com antenas brilhantes, hoje não há nada mais corriqueiro que verificar que por trás de megacorporações, do comércio varejista aos bancos públicos, existe um par de sapatos de salto alto, batom e terninhos de grife adornando cérebros privilegiados. Essas guerreiras da selva de pedra foram conquistando seu espaço não sem boa dose de sacrifício e uma apurada inclinação para a disputa, porque se sabiam em franca desvantagem. Ainda que de forma oblíqua, “Feios” toca na maior das obsessões da pós-modernidade: a beleza convencional, padronizada, e a qualquer custo. A adaptação de McG para o romance homônimo de Scott Westerfeld, publicado em 2005, fixa-se em Tally Youngblood, uma garota que, ao completar dezesseis anos, deve submeter-se à cirurgia que há de apagar todo traço de individualidade, apontando para o possível surgimento de sociedades robotizadas num futuro cada vez mais próximo, marcando dessa forma seu DNA de distopia pós-apocalíptica. Porém, “Feios” é bem mais que apenas isso.
Intelectuais como a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) deram colaborações inestimáveis para o fortalecimento da causa da mulher. Trabalhos a exemplo de “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, e “A Mulher Desiludida” de 1967, versaram sobre os desafios de ser mulher num mundo de homens, ou sob a forma de ensaios e elaborações retóricas, como no primeiro, ou a partir de histórias curtas em que personagens femininas despojam-se de vaidades ao dividir com o leitor as agruras de casamentos infelizes. Tudo isso parece delírio frente às profundas transformações protagonizadas por mulheres ao redor do mundo, mas só elas sabem o que já passaram — e passam ainda. O roteiro de Whit Anderson, Jacob Forman e Vanessa Taylor bate na tecla do debate sempre urgente da emancipação feminina, mas inclui todos qualquer um que tenha a sorte (ou o azar) de viver, quem sabe, os próximos cinquenta anos, driblando um sistema pensado para suprimir diferenças, a começar pelas físicas. Num dos prédios gigantescos que dominam a paisagem, mora Tally, que acorda com a ajuda de um despertador com voz metálica. Durante toda a vida ela quis ser bela, e quando parece ter chegado a hora, a garota é assaltada pelos pensamentos que atormentam qualquer um que preze pela sua verdadeira identidade, a que plástica nenhuma alcança. Joey King demonstra maturidade surpreendente para o papel, melhor a cada novo trabalho, e segura o filme quase sozinha, valendo-se da irretocável fotografia de Xiaolong Liu.
Filme: Feios
Direção: McG
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Ficção científica/Ação
Nota: 8/10