Certa vez, João Ubaldo escreveu uma crônica em que devaneava sobre o excesso de regras — certamente fruto do politicamente correto — no cotidiano do homem comum. Para passar seu recado, em vez de blasfemar contra essa ditadura infernal, o escritor simplesmente batizou o texto de “O correto uso do papel higiênico” e volveu linhas e linhas inventando, com ares de seriedade, uma lei que regulamentava a posição do rolo de papel nos banheiros. O texto adquire alguma seriedade e, lá pelas tantas, o recado está tão impregnado na alma que, dentre todas crônicas bem escritas que há por aí, essa foi a que primeiro me veio à mente para falar sobre formato.
Formato é um treco interessante. A tendência é achar que a embalagem das coisas é assunto superficial, fútil, dispensável. O que importa é o conteúdo, a essência e quem se é, afinal. Será? Talvez, num mundo de grande evolução espiritual, em que venhamos nus e crus, possamos nos despir o suficiente da embalagem para aderir apenas ao teor. Certamente serão dias mais claros e honestos. Até lá, no entanto, nada mais sem graça do que receber um presente com laço chocho, numa sacolinha de celofane amassada, que já foi usada uma algumas vezes, ainda que essa resistência soe absolutamente ridícula. É claro que o presente é muito mais importante, mas a embalagem — a tola da embalagem! — é o primeiro contato que haverá entre nossos olhos estupidamente humanos e aquele objeto que a nós se destina.
João Ubaldo queimou neurônios pensando na forma. De que maneira poderia melhor passar seu recado? Pensando no caminho mais eficaz para se fazer entender, calculou cada centímetro da metáfora e garantiu que o presente chegasse, pleníssimo, às mãos do leitor. Deu certo. A forma é importante, provou-nos o escritor. E provavelmente a máxima se estende a todas as searas da vida. Na arte da fala, porém, a urgência de se rever embalagens parece mais evidente. Por ser formulada “na tora” — sinapses quase simultâneas às palavras — geralmente escorrega e, várias vezes, nos faz cair de bunda no chão.
Você certamente já vivenciou isso. Cheio de boas intenções, tentou passar o um recado, dizer algo coerente que ajudasse alguém a se melhorar, mas acabou se embananando todo, perguntando-se repetidamente por que decidiu abrir a boca. Por exemplo, com o tempo, descobre-se que é importante escolher o ângulo pelo qual se passa a mensagem, sem que isso afete sua essência. Isso lembra um conto árabe, em que certo sultão contrata um sábio para interpretar um sonho que tivera, no qual perdera todos os dentes. O sábio lamenta pela desgraça e avisa que cada dente caído simboliza um parente que o monarca enterrará ao longo da vida. Furioso, o sultão o sentencia à morte e, na sequência, contrata outro sábio. Esse, por sua vez, avisa, com alegria, que o sonho retrata grande felicidade, pois o sultão terá a vida mais longa de toda a sua família!
Veja que não se trata de mascarar ou distorcer o que é dito, mas escolher o melhor caminho, o melhor contexto, a melhor maneira. Trata-se, ainda, de pensar menos em si e mais naquele que receberá o recado.
É claro, no entanto, que o contexto pode exigir exatamente a falta de papas na língua para que o conteúdo se faça entender. E aí, o ideal mesmo é deixar claro que o negócio é algo alarmante. Quando se é magoado, por exemplo, fundamental é deixar claro, por A mais B, que se está incomodado. É importante que as pessoas ao redor saibam quais são nossos limites, sob pena de nos afundarem na lama e verem o último dente brilhando num sorriso amarelo. O resultado pode ser irreversível. Além disso, há pessoas que não recebem o presente na embalagem bonita e só dão atenção quando ela está esbagaçada. Lembro de uma vez em que o colega de um amigo insistia em chamá-lo por um apelido até certo ponto degradante. O coitado tentou de tudo: bom humor, fofura, sutileza, mas o sem-noção não entendia como ele odiava aquilo. Até que um dia ele soltou a franga na franqueza e explicou como o apelido era insuportável e estúpido, apenas para ouvir, num tom de revolta, um “Nossa, mas podia ter falado de outra forma!”
É… Nem sempre a embalagem agrada, mas a vida tem essa coisa andar na corda bamba para conciliar as diferenças.
De todo jeito, o grande recado é: vale a pena pensar na forma. Grandes marcas pensam em logos; grandes poetas ruminam rimas, e mesmo Cristo passou seus ensinamentos por meio de parábolas, a fim de distribuir carapuças a todo mundo. Talvez um dia sejamos grandiosos a ponto de nos ater apenas ao conteúdo, mas até lá…