Na escuridão de uma noite úmida, as aves de rapina são as primeiras a farejar a morte. Depois vêm os leões, os tigres, as raposas, os lobos, as hienas e toda sorte de feras perigosas e traiçoeiras, obedecendo à implacável hierarquia que rege o reino animal. Esses pássaros das trevas são os únicos a subverter a claríssima lógica da cadeia alimentar, exercendo também seu papel de limpeza do ambiente, e decerto a soberania discreta desses bichos inspirou Dan Gilroy no que o diretor-roteirista apresenta em
“O Abutre”, uma engenhosa sátira ao jeito americano de viver e ao sensacionalismo de certa imprensa coroada pelo estudo de um anti-herói tão dissimulado quanto sagaz, que vai aprendendo rápido a se enfronhar no universo das notícias macabras sobre incêndios, acidentes, mortes horríveis, brigas de casal que terminam em golpes de facas de cozinha, tudo vendido no atacado e por uma bagatela a emissoras de televisão. Até que ele se torna o rei da selva.
Ele é Lou Bloom, um cinegrafista amador da periferia de Los Angeles que rouba sucata para vender no mercado paralelo e garantir um bife pequeno no jantar. Ao se deslocar pela cidade em busca de trabalho, fica sabendo que nenhum dos profissionais mais tarimbados do ramo se envergonha de não ter contrato com um grande canal — e tampouco de interceptar a frequência dos rádios da polícia, justamente para chegar antes das autoridades —, e então está próxima sua virada de chave. Ele procura Nina Romina, diretora de jornalismo de uma estação decadente que ameaça fechar devido aos reincidentes baixos índices de audiência, e se algum dos dois já nutriu a mais pálida ilusão de fazer qualquer coisa pelo bem comum, ela já morreu há muito tempo. Romina se interessa pelos serviços de Bloom, desde que ele não lhe traga registros de crimes em bairros pobres ou latinos, porque ninguém dá a mínima: as histórias dignas de serem contadas, parodiando a máxima daquele vetusto jornal, são as que envolvem brancos ricos. O monstro encontrou seu tugúrio.
À semelhança de “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), de Billy Wilder (1906-2002), ou “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles (1915-1985), “O Abutre” é daqueles filmes obrigatórios em faculdades de comunicação e afins, para dar fôlego ao clichê, mas não só. Gilroy acha um meio bastante original de cutucar quase literalmente as chagas sempre abertas da humanidade, dispondo das perspectivas opostas e complementares de Bloom e Romina, com Jake Gyllenhaal e Rene Russo surpreendentes até a última tomada. Gyllenhaal esconde a psicopatia de seu personagem em falas de estilo direto e reto, soltas como flechas de veludo com uma ponta de aço. Sua desfaçatez cai como uma luva em tempos como os nossos, em que ninguém é dono da própria imagem, o que desencadeia um imperceptível processo de degradação da cidadania e da moralidade que ainda não sabemos no que vai dar. Mas cuja pedra angular é colocar gente como Lou Bloom num pedestal altíssimo — do qual pode cair a qualquer momento.
Filme: O Abutre
Direção: Dan Gilroy
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10